Breve Biografia: João Calvino (Jean Cauvin)
João Calvino (que é o aportuguesamento de Jean Cauvin,
dito Calvin) – (10 de Julho de 1509 – 27 de Maio de 1564). Nasceu emNoyon,
Picardia, França, com o nome de Jean Cauvin. A transposição do nome “Cauvin”
para o Latim (Calvinus) deu a origem ao nome “Calvin” pelo qual ele é
conhecido.
Calvino foi inicialmente um humanista. Nunca foi
ordenado sacerdote na igreja católica (Posteriormente foi Pastor em Genebra).
Depois do seu afastamento da Igreja católica, este intelectual começou a ser
visto, gradualmente, como a voz do movimento protestante. Vítima das
perseguições aos protestantes (huguenotes) na França, fugiu para Genebra em
1536, onde faleceu em 1564. Genebra tornou-se definitivamente num centro do
protestantismo Europeu e João Calvino permanece até hoje uma figura central da
história da cidade e da Suíça. Martinho Lutero escreveu as suas 95 teses em
1517, quando Calvino tinha 8 anos de idade. Para muitos, Calvino terá sido para
a língua francesa aquilo que Lutero foi para a língua alemã – uma figura quase
paternal. Lutero era dotado de uma retórica mais direta, por vezes extremamente
dura, enquanto que Calvino tinha um estilo de pensamento mais refinado e
geométrico, quase de filigrana. Citando Bernard Cottret, biógrafo (francês) de
Calvino: “Quando se observa estes dois homens podia-se dizer que cada um deles
se insere já num imaginário nacional: Lutero o defensor das liberdades
germânicas, o qual se dirige com palavras arrojadas aos senhores feudais da
nação alemã; Calvino, o filósofo pré-cartesiano, precursor da língua francesa,
de uma severidade clássica, que se identifica pela clareza do estilo”.
Nyon
O avô de João Calvino trabalhava numa cantina em
Point-l’Évêque, nas proximidades de Noyon. Teve três filhos: Richard, que foi
serralheiro e se instalou em Paris, Jacques, igualmente serralheiro e,
finalmente, Girard Cauvin, pai de João Calvino, que foi aquele que talvez mais
se destacou dos três, tendo feito carreira em Nyon como funcionário
administrativo.
Girard Cauvin estabeleceu-se em Noyon em 1481. Foi
inicialmente um simples secretário da chancelaria. Seria, depois, advogado
representante do bispado de Nyon; mais tarde, funcionário relacionado com a
cobrança de impostos e, finalmente, o promotor (representante) do bispado,
antes de entrar em conflito com este. Faleceu em 1531 após uma disputa com o
bispado, pela qual foi excomungado. A autorização para o seu funeral seria
deveras dificultada devido a esta querela.
A mãe de Calvino, Jeanne Le Franc, de seu nome de
solteira, era filha de um dono de uma hospedaria em Cambrai, que tinha
enriquecido. Jeanne faleceu em 1515, quando João Calvino tinha apenas 6 anos de
idade.
Girard e Jeanne tiveram quatro filhos:
– Charles, o mais velho, foi padre. Faleceu em 1536.
– João Calvino.
– Antoine – Iria mais tarde viver em Genebra, junto do
irmão.
– François – Morreu ainda em tenra idade.
Haveria ainda duas irmãs, que nasceram do segundo
casamento de Girard. Uma chamou-se Maria e iria também viver em Genebra. Da
outra irmã sabe-se pouco.
João Calvino nasce a 10 de julho de 1509, nos últimos
anos do reinado de Luís XII. Freqüentou inicialmente o “Collège des Capettes”
em Nyon, onde adquiriu conhecimentos básicos de latim.
Em 1 de Janeiro de 1515 o rei Francisco I de França
(François, roi des françois), sucedeu a Luís XII. Inicialmente moderado em
matéria de religião, a postura deste rei foi endurecendo ao longo do seu
reinado, terminando na perseguição declarada dos protestantes.
Pela Concordata de Bolonha, assinada no início do seu
reinado, o papa Leão X concedia ao rei da França o direito a nomear os
titulares dos rendimentos da igreja. Em contrapartida, o Papa via reforçados os
seus direitos sobre a Igreja em França.
Paris
Em 1521, com 12 anos, João Calvino ganhou o direito a
uma “benefice”, ou seja, um rendimento anual que era concedido a elementos e
familiares da hierarquia da igreja. No seu caso, consistia numa determinada
quantia anual de cereais pagos por uma comunidade de La Gésine.
Em 1521 ou 1523 (data incerta) o pai enviou-o para a
Paris. Terá provavelmente vivido inicialmente com o tio Richard, na zona de
Sain-Germain-l’Auxerrois. Calvino começa por freqüentar o College de la Marche,
onde foi aluno de Maturin Cordier, um grande pedagogo do tempo. Estabeleceu,
aí, amizade com as crianças da família d’Hangest, do bispo de Nyon, que se
assumia, de certa forma, como protector dos Cauvins. Os seus amigos eram
Joachin, Yves e Claude, a quem mais tarde dedicaria o seu comentário a “De
Clementia” de Séneca, um autor conhecido pelo seu estoicismo.
Foi, de seguida, admitido no Collège Montaigu, uma
escola de má reputação, conhecida pela sua rigidez, pelas sovas e má comida. A
lista de professores em Montaigu, nesta época, incluía o espanhol Antonio
Coronel e o escocês John Mair (que foi professor de Inácio de Loyola), mas não
há provas definitivas de que eles tenham sido professores de Calvino.
Em fevereiro de 1525, o rei Francisco I foi
encarcerado temporariamente em Pavia pelas tropas do imperador Carlos V. Com a
intervenção do papa Clemente VII a favor de Francisco, a influência papal junto
do rei de França aumenta consideravelmente. Numa bula de 17 de Maio de 1525
dirige-se a Francisco para que tome providências contra o crescente número de
“blasfemos” em França e contra os ataques a imagens religiosas.
Em 1 de Junho de 1528 teve lugar em Paris o caso da
Rue des Roisiers. Uma figura de madeira situada nessa rua (uma madona) foi
decapitada por desconhecidos. O rei reage de forma veemente, organizando
procissões, que passaram a ser repetidas anualmente. O incidente ainda era
lembrado no século XIX.
Orleães
Em 1529, pouco antes de atingir os vinte anos de
idade, a vida de Calvino sofreu uma súbita virada. Tendo vindo inicialmente
para Paris com uma renda anual concedida pela Igreja, com o fim de estudar Teologia,
ficará a saber que o pai mudou de planos em relação ao seu futuro e quer que
ele siga Direito. A “ciência das leis torna normalmente ricos aqueles que se
debatem com ela”, referia o seu pai (ele próprio um advogado do bispado),
segundo as próprias palavras de Calvino. Cumpriu a vontade do pai e foi estudar
Direito para Orleães, mas nunca deixou de preferir a teologia. Como disse mais
tarde: “Se Deus me deu forças para que eu cumprisse a vontade de meu pai,
determinou ele pela providência oculta que eu tomasse finalmente um outro
caminho” (o da Teologia). Inicialmente Calvino preparava-se para ser padre,
enveredaria pelo estudo do direito, mas Deus trouxe-o de novo ao caminho da
Teologia.
O biógrafo francês de Calvino, Bernard Cottret,
escreve: “Direito e leis: Calvino, o teólogo, é no fim, também, Calvino, o
jurista. O seu pensamento fica marcado pela austeridade, a adstringência e a
geometria da lei, pelo seu fascínio ou aspiração a ela. No início do século XVI
assiste-se no Direito a uma verdadeira revolução. A retórica de Cícero toma a
primazia sobre a filosofia medieval, que se sustenta nos seus silogismos. Com a
interpretação de textos jurídicos, Calvino toma contacto pela primeira vez com
a Filologia humanista”. O humanismo e o renascimento são, pois, os movimentos
culturais que o vão influenciar em primeiro lugar.
Em Orleães, Calvino foi influenciado pelo seu
professor Pierre de l’Estoile. Em 1529, dirige-se também a Bourges, para
assistir a aulas do famoso professor de direito italiano Andrea Alciati, onde
também assiste a aulas do alemão Gräzist Wolmar, que o entusiasmou pela
literatura grega da antiguidade.
Em 1529, Louis de Berquin foi queimado vivo em Paris,
numa altura em que o rei, Francisco, estava fora da cidade.
Em 1531, Calvino, num prefácio ao livro de um amigo,
toma partido pelo seu professor Pierre de l’Estoile num texto que explora a
disputa entre este e Andrea Alciati, talvez por lealdade e nacionalismo. Neste
mesmo ano morre o pai, Gerard Cauvin. Calvino vai a Bourges, a Orleães e regressa
de novo a Paris, onde se instala em Chaillot.
O humanista Erasmo de Roterdã também se interessou
pela obra de Séneca
Em 1532, foi doutorado em Direito em Orleães. O seu
primeiro trabalho publicado foi um comentário sobre o texto do filósofo romano
Séneca “De Clementia”. Calvino cobre os custos da publicação do livro com
dinheiro do seu próprio bolso. Aos 23 anos era já um famoso humanista, seguindo
os passos de Erasmo de Roterdã, que também escreveu sobre Séneca nestes anos.
Em “De Clementia” não há da parte de Calvino uma alusão explicitamente
religiosa. É antes uma obra que reflete o estoicismo de Séneca e a
predestinação. Séneca escrevera o texto como forma de apelar Nero à moderação e
à razão.
Até 1532 não há, como se viu, qualquer indício de que Calvino
tenha aderido à nova fé – nos seus diferentes focos e graus que surgem pela
Europa.
A conversão de Calvino ao protestantismo permanece
envolta em mistério. Sabe-se apenas que ela se deu entre 1532 e 1533 (Calvino
tem 23 ou 24 anos). Um texto escrito por Calvino em 1557, como prefácio ao seu
comentário sobre os salmos oferece-nos alguns parcos pormenores:
“Após tomar conhecimento da verdadeira fé e de lhe ter
tomado o gosto, apossou-se de mim um tal zelo e vontade de avançar mais
profundamente, de tal modo que apesar de eu não ter prescindido dos outros
estudos, passei a ocupar-me menos com eles. Fiquei estupefato, quando antes
mesmo do fim do ano, todos aqueles que desejavam conhecer a verdadeira fé me
procuravam e queriam aprender comigo – eu, que ainda estava apenas no início!
Pela minha parte, por natureza algo tímido, sempre preferi o sossego e
permanecer discreto, de modo que comecei a procurar um pequeno refúgio que me
permitisse recolher dos Homens. Mas, pelo contrário, todos os meus refúgios se
tornavam em escolas públicas. Em resumo, apesar de eu sempre ter pretendido
viver incógnito, Deus guiou-me por tais caminhos, onde não encontrei sossego,
até que ele me puxou para a luz forte, contrariando o meu caráter, e como se
costuma dizer, me colocou em jogo. E, na verdade, deixei a França e dirigi-me
para a Alemanha para que ali pudesse viver em local desconhecido, incógnito,
como sempre tinha desejado.”
Note-se que a França e Alemanha não existiam no
sentido de hoje, mas sim em termos de zonas de língua francófona ou alemã.
Entretanto, o papa Clemente VII pressionava o rei de
França a reprimir os protestantes franceses. Em bulas de 30 de Agosto de 1533 e
de 10 de Novembro do mesmo ano, o papa exortava à “aniquilação da heresia
Luterana e de outras seitas que ganham influência neste reino”. Os dois
encontram-se, então, nesse mesmo ano, em Marselha, onde discutem entre outras
coisas a “guerra contra os turcos, lá fora, e a repressão das heresias cá
dentro”.
O discurso de Nicolas Cop
A 1 de Novembro de 1533, o novo reitor da Universidade
de Paris, o humanista Nicolas Cop, proferiu um discurso de abertura do ano
letivo na Igreja dos Franciscanos, em Paris, frente aos mais altos
representantes das 4 faculdades: Teologia, Direito, Medicina e Artes. O seu discurso
fazia eco de temas facilmente associados à nova teologia da reforma. Nesse
discurso, Nicolas fez, particularmente, o paralelismo entre a perseguição aos
primeiros cristãos e a que ocorria agora, século XVI, na França, e que visava
os cristãos protestantes. Argumentava: Não eram também chamados de heréticos os
primeiros seguidores do cristianismo? O resultado foi a perseguição do próprio
Nicolas Cop, que teve de se refugiar em Basiléia.
Simultaneamente, João Calvino fugia também de Paris. O
seu quarto no Collège de Fortet é revistado, e seus papéis e correspondência
são confiscados. Calvino encontra refúgio em Angoulême, em casa do seu amigo Du
Tillet.
Não foi até hoje esclarecido completamente o que se
passou. Encontrou-se, contudo, em Genebra, um fragmento do discurso de Nicolas
Cop, escrito pela mão de Calvino. O documento original completo encontra-se em
Estrasburgo. Foi levantada a tese de que Calvino poderia, pelo menos, ter
participado na elaboração do discurso.
Calvino permanece em Angoulême até Abril de 1534,
altura em que se dirige a Nérac, onde se encontra com Lefèvre d’Étaples.
Regressa depois a Noyon, onde em Maio de 1534 renuncia às suas “benefices”.
Volta, então, a Paris e a Orleães.
A Psychopannychia
Em 1534, Calvino escreve o seu segundo livro, que será
também o primeiro sobre religião. Chamar-se-á “Psychopannychia” e é
relativamente pouco conhecido, em comparação com as outras obras de Calvino.
Calvino faz uma crítica severa aos anabatistas, que acusa de serem uma seita
tresmalhada. O livro coloca questões teológicas, mais do que oferecer
respostas. Calvino, nos seus 24 anos de idade, está em processo de busca.
Defende a imortalidade da alma. O título completo era: “Psychopannychia –
tratado pelo qual se prova que as almas permanecem vigilantes e vivas uma vez
que tenham deixado os corpos, o que contraria o erro de alguns ignorantes que
sustentam que elas dormem até ao último momento” – o que é, também, um ataque
aos anabatistas. Apesar de escrito em 1534, o livro seria apenas publicado em
1542.
O caso dos cartazes de 1534
Em 18 de Outubro de 1534, a história do protestantismo
francês vive um dos seus momentos fulcrais, com o caso dos cartazes. Cartazes
de 37 por 25 cm que criticam a celebração da missa tal como ela é feita
oficialmente pela Igreja católica são afixados em vários locais. É
particularmente atacada a repetição cerimonial da morte de Cristo, simbólica,
no altar. Se o sacrifício já foi consumado, por que se apoderam os sacerdotes
católicos deste ritual simbólico? Os argumentos teológicos dos protestantes
fundamentam-se na Epístola de São Paulo aos Hebreus. A propaganda protestante
pretende transmitir a idéia de que a eucaristia é uma blasfêmia, uma vez que a
morte de Cristo não se deixa repetir. Esta demanda foi o resultado da ação de
Antoine Marcourt, Pastor de Neuchâtel, também ele um natural da Picardia. A
situação tornou-se particularmente crítica e descambou numa reação brutal por
parte da Igreja católica e do estado francês.
Protestantes franceses seriam encarcerados e assassinados.
Em Janeiro de 1535, o rei Francisco I organiza uma procissão macabra pelas ruas
de Paris. A procissão pára em 6 locais distintos. Em cada uma das paragens há
um pódio onde o rei, os embaixadores e dignos membros do “parlement” se
instalam para assistir à morte pela fogueira de 6“heréticos” envolvidos no caso
dos cartazes do ano anterior.
Basiléia
Em Janeiro de 1535, Calvino dirige-se a Basiléia,
cidade onde vive até Março de 1536. Uma cidade conhecida por ter sido o lar de
Erasmo de Roterdã e do reformador Johannes Oekolampad, falecido em 1531, sendo
o seu seguidor Oswald Mykonius.
A tradução da bíblia de Olivétan
Em 1535 é publicada a primeira bíblia traduzida por um
protestante, em francês. Tratava-se de uma tradução direta do Hebraico (o Antigo
Testamento) e do Grego (o Novo Testamento) – línguas originais das escrituras –
e não das versões então em uso, em latim. Algo totalmente natural no século do
humanismo e de Erasmo de Roterdã. O autor é Olivétan, aliás, Pierre Robert
(1506-1538), primo de João Calvino e proveniente também de Noyon. Foi publicada
em Neuchâtel por Pierre de Vingle.
Apesar de Pierre Robert ter demonstrado um bom
conhecimento de Hebraico e Grego, o seu estilo de escrita foi considerado de
difícil compreensão, além de uma certa falta de fluidez discursiva. O texto
seria revisto (com a colaboração de Calvino) e publicado novamente em 1546.
Édito de Coucy
Em 16 de Julho de 1535, o rei Francisco I faz publicar
o Édito de Coucy, uma medida de contemporização para com os protestantes e que
corresponde também a uma nova guerra de Francisco I contra Carlos V (Guerra de
1535-1538). Necessitando do apoio dos protestantes alemães para o esforço de
guerra e não convinha, necessariamente, perseguir os “Luteranos” em França. É
prometido que se deixarão os protestantes em paz desde que vivam como “bons
cristãos” e renunciem à sua fé. Mas, em Dezembro de 1538, o Édito de Coucy é
suspenso e as perseguições aos protestantes retomam a intensidade anterior.
Institutio religionis Christianae
Em Março de 1536 é publicada em Basiléia a primeira
edição de “Institutio religionis Christianae”. No prefácio menciona a sua
estadia em Basiléia, “enquanto na França são queimados na fogueira crentes e
pessoas santas”. Fala de santos mártires. Dirige-se no livro ao Rei Francisco
I, que procura convencer das boas intenções da reforma. Ao mesmo tempo, a sua
teologia começa a adquirir contornos mais marcados. Uma tendência que se
fortalecerá no futuro. Critica a vida dos mosteiros, que compara a bordéis.
Calvino pretende não só a reforma da Igreja, mas de todos os indivíduos. A
institutio é “a organização da sociedade daqueles que acreditam em Jesus
Cristo”.
Em Março de 1536, Calvino viaja até Ferrara na
companhia de Louis Du Tillet. Calvino esperava um acolhimento aberto às idéias
protestantes na sua estadia em Ferrara. Enganava-se. Teria de interromper a
visita logo em Abril. Foi então até Paris. Mas Calvino não tem futuro em
França. Numa carta ao amigo Nicolas Duchemin, compara a sua situação com a dos
judeus no Egito. A França era o seu Egito. Queixa-se na mesma carta dos rituais
da missa, considerando-os idólatras. Calvino sai definitivamente da França
em1536, procurando terras politicamente independentes da França e de espíritos
mais abertos para a reforma. Dirige-se, então, para cidades dos territórios que
hoje constituem a Suíça.
A reforma em Genebra
Genebra é nesta altura já uma cidade de espíritos
progressivos e abertos para a Reforma Protestante. Politicamente, a cidade está
desde 1285 sob vassalagem aos condes de Sabóia ou à casa episcopal (ao bispo de
Genebra), quase sempre ocupada por um bispo também da casa de Sabóia desde que
o papa Félix V (Amadeu VIII de Sabóia) se autonomeou bispo da cidade. Na
prática, no entanto, Genebra é quase uma cidade-estado, uma república que desde
cedo se emancipou na conquista da sua liberdade municipal. Em1522 inicia-se um
conflito entre os pejorativamente chamados “mamelucos“, que são conservadores e
partidários da casa de Sabóia e os “confederados” (alemão: Eidgenossen; francês:
Eidguenot) de onde possivelmente se formará a palavra Huguenotes (francês:
huguenot). Estes últimos opõem-se a Sabóia. Em 1524, Karl III, Duque de Sabóia,
tinha ocupado militarmente Genebra. Porém, em 1526, Genebra decide-se pela
união com Bernae Friburgo, iniciando-se no caminho helvético. A reforma
protestante não terá tido um papel determinante neste processo, segundo Bernard
Cottret. Mas a partir daqui começam a reunir-se em Genebra elementos da
Reforma. Em 1533 há o primeiro culto protestante de que há conhecimento nesta
cidade. São então cunhadas moedas com a inscrição: “Post tenebras lux” (após a
escuridão, a luz)
.
O ano de 1536 marca uma virada na cidade de Genebra.
Neste ano, a reforma é adotada oficialmente pela cidade. Os clérigos da igreja
católica são intimados a deixar de celebrar a missa como o faziam, com o
cerimonial papista e seus abusos e a juntarem-se aos protestantes. . Já desde
1532 que se registavam ataques e destruições de imagens religiosas, estátuas,
figuras, etc.. Em Junho de 1536, são abolidos em Genebra, por decisão de um
conselho, todos os feriados, exceto os domingos. Todas estas transformações
deram-se sem a influência de Calvino. Aliás, ainda nem sequer aí tinha chegado.
Chegada de Calvino a Genebra
1536 é também o ano da chegada de Calvino a Genebra.
Calvino tem nessa altura 26 anos.
Após a estadia em Ferrara, na Primavera de 1536,
Calvino tinha estado em Paris, aproveitando-se de um período de relativa calma
na perseguição aos protestantes. Tratou de assuntos pessoais e da família. Em
junho faz em Paris uma procuração em nome do seu irmão. Em Julho de 1536, João
Calvino, pretendendo dirigir-se a Estrasburgo, inicia a viagem, juntamente com
o irmão Antoine e a irmã Marie. Em vez de tomar o caminho mais curto, Calvino
faz um desvio pelo sul, evitando a área onde a guerra entre as forças de
Francisco I e Carlos V são uma ameaça. Por coincidência, Calvino chega a
Genebra, onde permaneceu, apesar de ter inicialmente pretendido continuar
viagem, o que foi vivamente desaconselhado pelo reformador Guillaume Farel (na
altura de 47 anos de idade). O caminho para Estrasburgo encontrava-se inseguro
por causa da guerra. A Genebra que Calvino encontra vive ainda a agitação dos
conflitos entre Mamelucos e Confederados.
João Calvino já tinha viajado até Estrasburgo durante
as guerras otomanas, e passado através dos cantões da Suíça. Aproveitando da
sua estadia em Genebra, Guillaume Farel pediu ajuda a Calvino na sua causa pela
igreja. Calvino escreveu sobre este pedido: “senti como se Deus no céu tivesse
colocado a sua poderosa mão sobre mim para barrar-me o caminho”. 18 meses
depois, as mudanças de Calvino e Farel levariam à expulsão de ambos.
A disputa teológica de Lausanne
Entre 1 e 8 de Outubro de 1536, tem lugar na Catedral
de Notre-Dame em Lausanne uma disputa teológica entre protestantes e católicos,
na qual Calvino e Farel vão participar. Este tipo de conferências de disputa
tem por modelo os debates que Ulrich Zwingli tinha organizado em Zurique (1523)
e Berna (1528). Do lado católico encontra-se Pierre Caroli, que iria acusar, em
Berna, Calvino e Farel de heresia.
A saída atribulada de Genebra
A 16 de Janeiro de 1537, as autoridades da cidade de
Genebra aprovam o documento escrito pelo líder protestante Farell, que se
destina a servir de confissão de fé e orientação para todos os habitantes de
Genebra. Calvino faz também algumas sugestões, parte das quais são rejeitadas.
A 3 de Fevereiro de 1538 são eleitos para as
autoridades da cidade de Genebra 4 pessoas que são inimigos de Calvino e dos
protestantes. Em Março, estas novas autoridades proíbem Calvino e Farell de se
pronunciarem sobre assuntos não religiosos.
Calvino e Farell negam-se a celebrar a comunhão de
acordo com a tradição de Berna. São proibidos de celebrar a missa. No entanto,
no Domingo seguinte, 21 de Abril de 1538, Farell e Calvino celebram a missa
como habitualmente, Farell na Igreja de Saint-Gervais e Calvino na de
Saint-Pierre. As autoridades dar-lhes-ão três dias para saírem da cidade.
Estrasburgo
Em 1538, Farell irá refugiar-se em Neuchâtel. Calvino
dirige-se a Estrasburgo, após ter inicialmente pretendido ir para Basiléia.
Estrasburgo era na altura parte da zona de língua alemã, mas a proximidade da
fronteira com a França significava que ali se tinha desenvolvido uma comunidade
de exilados franceses. Tal como em Genebra Farell reconhecera o potencial de
Calvino, em Estrasburgo Martin Bucer será o protetor de Calvino. Durante três
anos Calvino dirigiu em Estrasburgo uma igreja de protestantes franceses, a
convite de Bucer. Segundo o biógrafo Courvoisier, Estrasburgo é a cidade onde
Calvino se torna verdadeiramente Calvino. O seu sistema de pensamento é aqui consubstanciado
em algo de mais marcadamente original. A sua obra Institutio é aqui re-editada
(1539). É agora três vezes maior do que a primeira edição.
Em Outubro de 1539, Pierre Caroli chega a Estrasburgo,
onde permanece pouco tempo. Caroli e Calvino, inimigos desde há anos, têm uma
disputa. Caroli está agora algures entre o catolicismo e o protestantismo. Ele
acusa Calvino de o ter confundido na sua fé.
Neste Outono de 1539, Calvino escreve também um
comentário à carta de Paulo aos Romanos. Este tema é particularmente querido do
protestantismo, porque ali se encontra a justificação através da fé, pois
somente a fé salva e justifica. A igreja é por este prisma mais uma comunidade
de crentes do que um enquadramento jurídico. Os sacramentos só recebem o seu sentido
através da fé. Sem fé não têm qualquer efeito. Já Lutero tinha destacado a
carta de Paulo aos romanos como o cerne do Novo Testamento e o mais alto do
evangelho.
Em Estrasburgo, Calvino casa-se em Agosto de 1540 com
a viúva Idelette de Bure, que tinha sido previamente adepta do anabatismo. Traz
duas crianças do seu prévio casamento. Calvino tem 31 anos de idade. A
cerimônia do casamento foi dirigida por Guillaume Farel. Em 1541 a peste negra
(ou peste bubônica) recrudesce em Estrasburgo. Idelette e as duas crianças
procuram abrigo em casa de um irmão dela, nas redondezas.
Regresso a Genebra
Após a expulsão de Calvino, católicos, anabatistas…
continuavam a ser “convidados” a deixar a cidade. A 18 de Março de 1539 o jogo
tinha sido proibido em Genebra. Pedintes e vagabundos eram expulsos da cidade.
A ausência de Calvino não tinha significado qualquer laxismo na moral estrita
imposta na cidade.
As relações de Genebra com Berna permanecem tensas.
Entretanto, os líderes que se opunham a Calvino (os chamados “artichoques”)
começam a perder influência. São acusados de simpatia por Berna. Jean Philip,
um de seus líderes, é torturado e decapitado em 1540. Os oponentes, favoráveis
a Calvino, chamados de “Guillermins” ganham o poder.
Calvino foi convidado em Outubro de 1540 a regressar a
Genebra, para reaver o seu posto na igreja, tal como o tivera antes da
expulsão. A 13 de Setembro de 1541 Calvino chegou, pela segunda vez, a Genebra,
mas, desta vez, definitivamente. Começou, então, a organizar e estruturar, de acordo
com as linhas bíblicas, os ministérios e a ação dos professores e diáconos.
São ainda de 1541 as propostas de Calvino, no sentido
da reorganização da igreja. As “Ordonnances de 1541″ dispõem a formação de 4
corpos:
– Pasteurs (pastores, que pregam)
– Docteurs (ensinam)
– Anciens (os mais velhos, que chamam à ordem aqueles
que prevaricam)
– Diacres (diáconos, que ocupam-se dos pobres e
doentes) – mendigar é estritamente proibido.
É decidida também a criação de um consistório –
composto de elementos da igreja e de laicos – que se reúne regularmente para
julgar os comportamentos individuais, como um tribunal, “de acordo com a
palavra de Deus”, sendo a excomunhão de pessoas a mais grave sentença que pode
decidir.
Em 1542, o filho de Calvino, Jacques, morre pouco
depois de nascer em 28 de Julho.
A partir de 1542 e, sobretudo na década de 1550, a
cidade de Genebra vai conhecer um grande crescimento demográfico, com a chegada
de refugiados franceses, protestantes perseguidos em França. Conseqüentemente,
há uma fase de expansão econômica (relojoaria, tecelagem…) e a língua francesa
começa a ter preponderância sobre o dialeto franco-provençal da região.
Em 1547, Henrique II de França sucede a Francisco I.
Henrique será um rei menos reconhecido, em comparação com Francisco. É
caracterizado como menos carismático, menos entusiasta pelas artes e ciências,
mais introvertido e frio.
Em 29 de Março de 1549 morre Idellete Calvino, após
doença. Calvino não voltará a casar. Dedica-se ainda mais decididamente ao
trabalho.
Em 1550 a repressão dos huguenotes em França cresce. É
estabelecida a chambre ardente. A censura é fortalecida.
Relacionamento com a reforma inglesa
Por volta de 1550, Calvino escreve ao rei Eduardo VI
de Inglaterra, um protestante, encorajando-o nas suas reformas. O rei Eduardo
VI fez acolher protestantes franceses, perseguidos no país natal. Após o
reinado de Eduardo VI (1547-1553) o catolicismo regressa à Inglaterra sob a
liderança de Maria Tudor.
Novas dificuldades
Entre 1553 e 1555, em Genebra, a relação tensa entre a
igreja – particularmente o consistório, onde Calvino é uma figura de relevo – e
as autoridades seculares da cidade, eleitas entre os habitantes (ricos) da
cidade, atinge o seu auge. Discutia-se, então, a questão de saber se o consistório
teria ou não o direito de excomungar pessoas. As amargas trocas de palavras
entre estes dois pólos multiplicaram-se. Por um lado, o zelo religioso dos
Calvinistas, do outro, a autoridade política da cidade. Em Janeiro de 1555 há
uma procissão noturna de pessoas em Genebra, caminhando de vela na mão, com a
pretensão de ridicularizar Calvino.
Apesar disso, e em parte por causa do peso relativo da
população protestante francesa que se tinha refugiado na cidade, as eleições
dos 4 novos “Syndics” de Genebra em Fevereiro de 1555 é favorável aos
Calvinistas, que se impõem contra os “Enfants de Genève” sob a liderança de
Perrin. Após as eleições, porém, há desacatos na rua entre as duas partes.
Perrin e outros líderes da revolta são presos e serão decapitados e esquartejados.
Os pedaços dos cadáveres foram, depois, exibidos nas ruas da cidade.
Também a doutrina da Predestinação foi muito atacada
nestes anos, principalmente por um monge carmelita chamado Hiérome Bolsec,
nascido em Paris, que se tinha estabelecido em Genebra. Argumentava que se Deus
fosse o responsável por tudo o que se passa, então, também seria responsável
pelos nossos pecados. Calvino responde que nunca disse isso e as autoridades
apoiam-no. Em Berna, os críticos de Calvino são expulsos da cidade em 1555.
Em 1555 são erguidas as primeiras igrejas calvinistas
em França, nomeadamente em Paris, Meaux, Angers, Poitiers e Loudun. Nos três
anos seguintes surgem as comunidades de Orleães, Rouen, La Rochelle, Toulouse,
Rennes e Lyon.
A 8 de Junho de 1558, Calvino escreve a Antoine de
Bourbon, o Rei de Navarra e consorte de Jeanne d’Albret, exortando-o a seguir
na sua vida privada os mesmos que os seus súditos.
Entre 26 e 29 de Maio de 1559 realiza-se em Paris um
sínodo nacional protestante. Cerca de 30 paróquias aparecem aí representadas. O
sínodo será responsável pela elaboração de um texto de linhas orientadoras (com
a participação de Calvino na sua criação), que se chamará Confession de La
Rochelle (texto confirmado nesta cidade em 1571).
Em 1559 Calvino fundou uma escola e um hospital.
Em Abril de 1559 é assinado o pacto de paz entre a
França e a Espanha, em Cateau-Cambrésis
O Fim
Nos seus últimos anos de vida, a saúde de Calvino
começou a vacilar. Sofrendo de enxaquecas, hemorragia pulmonar, gota e pedras
nos rins foi, por vezes, levado carregado para o púlpito. Calvino continuava a
ter detratores declarados que lhe dirigiam ameaças constantes.
Entretanto, apreciava passar os seus tempos livres no
lago de Genebra, lendo as escrituras e bebendo vinho tinto. No final de sua
vida disse a seus amigos que estavam preocupados com o seu regime diário de
trabalho: “Qual quê? Querem que o senhor me encontre ocioso quando ele chegar?”
João Calvino faleceu em Genebra a 27 de Maio de 1564.
Foi enterrado numa sepultura simples e não marcada, conforme o seu próprio
pedido.
FONTE REFORMA E RAZÃO
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PAZ DO SENHOR
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