Certo número de
soluções tem sido oferecido para dar solução a essas dificuldades, a saber:
1. Alguns
estudiosos supõem que o incidente aqui registrado é historicamente autêntico,
mas que tenha chegado ao conhecimento de Lucas como vaga reminiscência, tendo
sido escrito fora de sua devida posição cronológica, pois sua posição certa
seria após a narrativa do décimo quinto capítulo de Atos. Isso faria do
registro uma reiteração histórica de sua ultima visita, posta ali por
antecipação. Poderia ter sido uma visita posterior ao tempo que parece ser
sugerido pela sua posição dentro do livro de Atos, e como resultado da
admoestação feita pelos apóstolos, quando do concilio de Jerusalém, para que
Paulo e seus colegas de ministério entre os gentios, segundo ele mesmo
diz, «...nos lembrássemos dos pobres...» (Gl 2:10).
2. Alguns outros
estudiosos pensam que essa anterior viagem e missão realmente teria
ocorrido, e que Paulo tivera a intenção de ir também. Mas, por alguma razão,
para nós desconhecida, somente Barnabé pôde fazê-lo. Lucas, tendo encontrado em
seu material informativo, a ideia de que Paulo também fora escolhido para fazer
essa viagem, mui naturalmente teria concluído que Paulo também participara da
viagem, e assim escreveu, embora esse apóstolo, realmente, não tenha
feito a citada viagem.
3. A narração
sobre essa visita da fome e a narração sobre a «visita ao
concilio», na realidade, seriam uma reiteração, isto é, descrições sobre o
mesmo acontecimento, embora baseadas em fontes informativas diferentes,
narradas de diferentes pontos de vista. Uma dessas fontes informativas
salientaria a generosidade da igreja de Antioquia (a que está por detrás da
«visita da fome», ao passo que a outra frisaria o debate havido, em Jerusalém,
sobre a legitimidade do cristianismo gentílico, o qual, incidentalmente,
incluiu eventos similares àqueles aqui historiados. A primeira fonte
informativa estaria na igreja de Antioquia, e a localidade da segunda (ver o
décimo quinto capítulo do livro de Atos) seria a igreja de Jerusalém. Um bom
número de críticos modernos aceita essa explicação para o problema,
mas as explicações seguintes podem ter também alguma dose de verdade,
contrárias ao ponto de vista aqui exposto.
Essa posição
acima faz o trecho de Gl 2:1-10 e o décimo quinto capítulo do livro de Atos
exporem a mesma questão, e, portanto, deixa sem explicação as sérias
discrepâncias existentes entre esses dois textos. Por isso mesmo tem sido
oferecida ainda uma outra solução: A passagem de Gl 2:1-10 deveria
ser identificada com a «visita da fome», e não com a visita ao concilio. As
duas ocorrências, portanto,seriam distintas, tal como Lucas registrou.
Deve-se observar, na epístola aos Gálatas, que Paulo assevera que subiu a
Jerusalém por revelação (ver Gl 2:2), e isso poderia ser uma referência à
inspirada advertência dada ao profeta Ágabo, em At 11:28, concernente à
fome que haveria de prevalecer. As ações de Paulo e Barnabé, por conseguinte,
também estariam conforme a injunção que lhes recomendava se lembrarem dos
pobres (ver Gl 2:10). A visita da fome, feita por Paulo,
pois, teria sido feita em antecipação à posterior e maior «coleta para os
santos», o que, pelo menos em parte, resultou das decisões tomadas pelo
concilio de Jerusalém. Outrossim, a conduta duvidosa de Pedro em Antioquia, ao
recusar-se a comer em companhia de gentios, por causa das pressões que sofria
da parte dos judaizantes, torna-se muito mais compreensível, se isso teve lugar
antes do concilio formal de Jerusalém, que tratou exatamente da posição dos
irmãos gentios. (Ver G 2:11 e s.). Assim, pois, fica uma vez mais
comprovado que o trecho de Gl 2:1-10 mais provavelmente descreve a «visita da
fome», e não a «visita ao concilio».
Essa posição é
assumida por Turner, em Chronology of the New Testament, (Dictionary of the Bible),
James Hastings, Nova Iorque, 1900; e por Sir William
M. Ramsay (evidentemente o primeiro erudito de fama a sugerir essa ideia), como também por C.
W. Emmet, em um ensaio intitulado The Beginnings of Christianity, II,
págs. 277 e s. Assim sendo, o segundo capítulo da epístola aos Gálatas
descreveria, se essa posição está certa, um debate de natureza particular e
informal, e não um debate publico, que teria a natureza da ocorrência descrita
no décimo quinto capítulo do livro de Atos.
Mas ainda
existem outros problemas de cronologia, a saber:
Josefo
(ver Antig. xx.5,2) informa-nos que houve uma fome em cerca de
46 d.C. Isso dataria a «visita da fome», feita por Paulo a Jerusalém. A visita
a Jerusalém, conforme aparece mencionada no trecho de Gl 2:1, teria ocorrido
«catorze anos» antes, de acordo com o cômputo inclusivo, que era o método
antigo de contar uma série qualquer, situaria a data em 33 d.C. E a
conversão de Paulo teria sido três anos antes (ver Gl 1:18),
ou seja, em 31 d.C., segundo ainda o mesmo método de cômputo inclusivo. A
crucificação teria ocorrido em cerca de 29 d.C. Talvez, entretanto,
os «catorze anos» aludidos em Gl 2:1 sejam «quatro anos», segundo alguns
estudiosos conjecturam, em que um erro primitivo teria sido preservado em todos
os manuscritos bem conhecidos da epístola aos Gálatas, em qual caso a
cronologia seria a seguinte:
1. A
crucificação 29 D.C.
2. A conversão
de Saulo 31 ou 39 D.C.
3. Primeira
visita, após três anos 33 ou 42 D.C.
4. «Visita da
fome», após catorze anos 46(?) D.C.
5. «Visita ao
concilio» 49 D.C.
A primeira
viagem missionária de Paulo (em cerca de 47 ou 48 d.C), que é
descrita no décimo terceiro capítulo do livro de Atos, mui provavelmente teria
ocorrido entre a segunda e a terceira visitas. Foi durante esse mesmo tempo
que, mui provavelmente, foi escrita aepístola aos Gálatas. Posto que nem
Lucas e nem Paulo resolveram dar uma narrativa cronológica completa,
e posto que talvez haja alguma deslocação de material, isto é, que nem sempre
tenha sido seguida uma ordem estritamente cronológica na apresentação das
narrativas, a nós foi dado conhecer apenas alguns dentre muitos acontecimentos.
Questões como sequências exatas permanecem em dúvida, não havendo forma
totalmente adequada e Isenta de dúvidas para examinarmos essas questões
agora, passados mais de mil e novecentos anos.
Levando-se em
conta todas as considerações, entretanto, parece melhor identificarmos a
«visita da fome» com a narrativa do segundo capítulo da epístola aos Gálatas,
ao passo que a visita ao concilio como algo realizado em data
posterior. A «visita da fome», pois, é assim corretamente distinguida por Lucas
da visita de Paulo ao concilio de Jerusalém, registrado no décimo quinto
capítulo do livro de Atos. A «visita da fome», por conseguinte, assinalou uma
crise real na carreira de Paulo como apóstolo, visto que foi então que tiveram
lugar as acerbas disputas, com os irmãos de tendências legalistas, em
Jerusalém. Mas a ação de Paulo foi posteriormente justificada, quando do
concilio de Jerusalém, conforme o registro do décimo quinto capítulo do livro
de Atos. Nessa oportunidade, contudo, Paulo se tornou realmente bem conhecido,
e o seu ministério entre os gentios foi amplamente reconhecido por todos, como
merecedor de aprovação.
Os «...profetas...», na
igreja cristã primitiva, evidentemente eram homens dotados de considerável
aptidão psíquica, conhecidos por suas declarações inspiradas, pelo que também
eram distinguidos dos pregadores ordinários das igrejas. Eram reputados, quanto
à categoria espiritual, imediatamente depois dos apóstolos, no exercício dos
dons espirituais, segundo se depreende de trechos como I
Co 12:28; Ef2:20; 3:5; 4:11 e Ap 22:9, No livro de
Atos os profetas são aludidos em At 13:1; 15:32;
21:9,10 e nesta seção. Os profetas exerciam os seu ofício mais em virtude
de seus dons carismáticos do que por qualquer sanção oficial ou nomeação por
parte da igreja, porquanto não há evidências de que a posição deles existia
através de qualquer forma de ato consagratório.
O trecho de I
Co 14:29-39 mostra-nos, todavia, que algumas vezes os profetas se
deixavam arrebatar em seu entusiasmo, ao ponto de haver desordem nos cultos das
igrejas; e isso Paulo censurou severamente. É óbvio que até mesmo naqueles
primeiros dias surgiram dúvidas sobre a autenticidade dos dons de alguns desses
«profetas», o que se depreende pelo fato de que alguns deles eram suspeitos de
receberem o seu poder da parte maligna, e não de alguma fonte boa. (Ver I
Jo 4:1 e I Ts 5:20,21). Os poderes que chegam de fontes
sobrenaturais, que manifestamente estão acima do que se poderia esperar da
capacidade humana normal, sempre serão difíceis de aquilatar quanto à sua
origem; e, nesses casos, podemos tão-somente aplicar o que disse o Senhor
Jesus: «Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis»
(Mt 7:20). Infelizmente, o moderno critério para julgar tais pessoas
tem degenerado ao teste que diz: «Por suas denominações os conhecereis». Mas
essa atitude resulta do sectarismo, e certamente não agrada a Deus.
Judas e
Silas eram profetas,
conforme são chamados (ver At 14:4 e 15:32). Tinham uma
inspiração superior àquela dos que falavam em línguas (ver I
Co 14:3). João Batista também foi chamado de profeta (ver
Lc 7:26). Profetas autênticos são extremamente necessários na igreja
cristã moderna; mas o quadro geralmente é tão confuso e contraditório que é
dificílimo distinguirmos o falso do verdadeiro.
É bem
provável que certo número desses «profetas» primitivos fizesse parte original
dos setenta discípulos, cuja missão é descrita no décimo capítulo do evangelho
de Lucas; mas não há razão para limitá-los à esfera dos profetas. O dom da
profecia com frequência incluía a predição de acontecimentos;
mas era mais especificamente caracterizado por um exaltado e sobre-humano
ensino. Isso novamente, enfatiza a importância do ensino, posto que essa
função era favorecida pela dispensação de um dom espiritual todo
especial.
11:28 e
levantando-se um deles, de nome Ágabo, dava a entender pelo Espirito, que
haveria uma grande fome por todo o mundo, a qual ocorreu no tempo de Cláudio.
A derivação do
nome «...Âgabo...» é incerta; mas é possível que seja idêntico
ao apelativo Hagabe ou Hagabá, que aparece no A.T. Sabemos
pouquíssimo sobre esse homem, porquanto há tão-somente duas referências a ele
em todo o N.T., isto é, aquela que encontramos aqui, onde ele predisse a fome
que realmente ocorreu quando do reinado de Cláudio, e a sua predição sobre a
sorte que esperava Paulo em Jerusalém, em profecia feita em Cesaréia. (Ver
At 21:10,11). Segundo as tradições posteriores, Ágabo aparece como um dos
«setenta» discípulos (descritos no décimo capítulo do evangelho de Lucas), até
que, finalmente, foi martirizado por sua fé. Embora, em alguns escritos
antigos, seja dito que ele era nativo de Antioquia, parece antes, por este
texto, que ele era da Judéia, talvez de Jerusalém. Diz-se que ele morreu em
Antioquia, e o martirológio romano o venera a 3 de fevereiro.
«...grande
fome...» Não há razão para
supormos que homens, ajudados ou não pelo Espírito Santo, possam com frequência
predizer eventos futuros, pois, afinal de contas, o homem é um ser espiritual,
que temporariamente está cativo a um corpo físico. A predição do futuro não é,
necessariamente, uma característica «divina» ou demoníaca. Os
estudos feitos quanto ao fenômeno dos sonhos mostram que todos os seres
humanos, no estágio do sono, combinam acontecimentos passados, presentes e
futuros no conteúdo de seus sonhos, na tentativa de encontrar solução para os
seus problemas. Todos os homens, simplesmente por serem homens, até certo ponto
são «profetas», se limitarmos o sentido desse vocábulo para que indique somente
a predição do futuro. Naturalmente um profeta, no sentido bíblico, é muito mais
do que um indivíduo que prediz o futuro; é igualmente um homem espiritualmente
dotado, que exerce um dom de ensino; e quando prediz o futuro, fá-lo por alguma
razão espiritual, e não meramente como curiosidade de informação. Naturalmente
aqueles que são dotados de algum dom espiritual são pessoas capazes de predizer
o futuro com muito maior significação do que os homens ordinários podem
fazê-lo.
Cada indivíduo é
um instrumento sem-par. É interessante observarmos que Ágabo evidentemente
se especializou em conhecer o futuro e em maior extensão até mesmo que alguns
dos apóstolos. Pois aqui estava alguém que fez tal predição, enquanto que
Paulo, apesar de apóstolo, nada sabia a respeito. Além disso, no vigésimo
primeiro capítulo do livro de Atos, quando Ágabo adverte sobre as consequências
da visita de Paulo a Jerusalém, porquanto ali seria feito prisioneiro,
novamente foi ele quem reconheceu o futuro, e não Paulo ou qualquer outro
ministro da igreja. Trata-se de um fenômeno assaz interessante, pois, considerando-se
o quadro total, Paulo e os demais apóstolos supostamente eram mais bem-dotados
na diversidade dos dons inspirados pelo Espírito Santo do que Ágabo; mas o seu
dom era especialmente adaptado para predizer o futuro. Assim, pois, cada
indivíduo recebe o seu próprio dom, e, sendo isso dirigido para propósitos
específicos, torna cada crente individual uma criatura sem igual. Por
conseguinte, apesar de todos os remidos estarem
sendo transformados segundo a imagem moral e metafísica de Cristo, compartilhando
de sua santidade e de suas perfeições, cada indivíduo é um instrumento especial
para a glória de Deus.
A «...fome...» predita
por Ágabo também ficou registrada na história. Tácito (Anais xii.43)
e Suetônio (Claudio, 18) se referem a diversos períodos de fome
durante o reinado de Cláudio (41 - 54 D.C.). Josefo menciona uma fome
especialmente severa na Judéia, que ocorreu em 46 D.C., a qual, sem a menor
sombra de dúvida, é a escassez aqui referida por Lucas. Diom Cássio
(lib. lx) menciona severa fome, que ocorreu no primeiro e no segundo anos
do reinado de Cláudio, a qual foi sentida pesadamente até mesmo na longínqua
Roma. Essa fome foi que evidentemente induziu o imperador Cláudio a construir
um porto marítimo em Óstia, para que a cidade de Roma pudesse ser mais
regularmente suprida de víveres, que geralmente lhe chegavam por via marítima.
Um segundo
período de fome ocorreu no quarto ano de seu reinado, escassez essa que
prosseguiu por diversos anos e afligiu grandemente a Judéia. (Ver Josefo, Antiq. xx.5,
seção 2). Mui provavelmente essa é a fome mencionada no vigésimo oitavo
capítulo do livro de Atos, quando ela foi predita.
Uma terceira
fome foi mencionada por Eusébio (An. Abrahami), que teve
começo em outubro de 48 D.C. que atingiu severamente grande parte do mundo
civilizado de então.
Um quarto
período de fome teve lugar no décimo primeiro ano do reinado de Cláudio, fome
essa mencionada por Tácito (ver Anais, xii.,seção 43). Essa
fome foi tão severa, nessa ocasião, que se pensou ser um julgamento divino.
Tácito revela que em todas as vendas de Roma não havia provisões para mais de
quinze dias, e que se o inverno não tivesse vindo extraordinariamente suave,
teria havido aflição e miséria espantosas.
É muito provável
que a fome, mencionada neste livro de Atos, no segundo ano do reinado do
imperador Cláudio, tenha perdurado por diversos anos, de conformidade com as
fontes históricas de que dispomos, ou seja, de 45 a 47 D.C. Quando a predição
da fome foi feita por Ágabo, deveria estar a apenas meses de distância, ou
talvez já estivesse em seus estágios iniciais.
«...Cláudio...» Cláudio foi imperador romano de 41
a 54 D.C. Suetônio (ver Cláudio, 29), um dos
historiadores romanos, diz-nos que esse imperador expulsou os judeus da cidade
de Roma, por haverem feito levantes instigados por Cresto (presumivelmente o
incidente registrado em At 18:2). Se isso é verdade, então «chrestus» (nome
esse que se deriva de um substantivo próprio que, no grego, significabom) mui
provavelmente foi confundido por Suetônio com a palavra «christos»
(no grego, ungido). E, assim sendo, a causa da agitação entre os judeus teria
sido sua oposição e conflito contra os cristãos.
Um decreto,
provavelmente baixado por Cláudio, punia um furto feito em um túmulo, e têm
sido encontradas evidências arqueológicas em confirmação a isso,
na Galiléia. Alguns estudiosos têm suposto que essa ação foi parcialmente
provocada pela história da «ressurreição» de Jesus; porém, se esse decreto foi
baixado por Cláudio, parece ter sido muito posterior para que tivesse qualquer
coisa a ver com a ressurreição do Senhor. A menos, naturalmente, que tenha dito
respeito à pregação da igreja cristã primitiva, predica essa que incluía a
ressurreição de Cristo (em vinculação à acusação, assacada pelos judeus, de que
o corpo de Jesus fora furtado pelos seus discípulos, e não que ele realmente
ressuscitara). Ora, a agitação que isso facilmente poderia ter provocado, bem
poderia ter sido o motivo do decreto imperial, até mesmo nos tempos posteriores
de Cláudio. Essa particularidade, entretanto, até hoje não pôde ser determinada
com exatidão, e, no presente, não há como dar solução ao problema. Cláudio
morreu envenenado pela sua quarta esposa,Agripina, mãe de Nero (54
D.C), após ter feito um reinado fraco, durante o qual, no dizer
de Suetônio, ele «...mostrou-se não um príncipe, mas um servo», pois
se deixava guiar pelos outros.
Variante Textual_Os versículos vinte e seis e
vinte e oito são expandidos
no chamado
texto «ocidental», para que digam: «...e naqueles dias vieram profetas de
Jerusalém a Antioquia, e houve muita alegria. E quando estávamos reunidos,
um deles, de nome Ágabo, falou, querendo dizer...» Assim diz o códex D,
bem como as versões latinas p e w. O texto ocidental (manuscritos
que nos vieram das igrejas cristãs do ocidente, isto é, da Itália e de certas
regiões do norte da África) conta com tão numerosas variantes que sugere que o
livro de Atos circulou, na igreja cristã primitiva, em duas edições separadas.
A maior parte dessas variantes consiste em expansões e ornamentações feitas no
texto; porém, os trechos que dizem respeito à Ásia Menor encerram interessantes
e significativas variantes, do ponto de vista histórico e geográfico. Esse
texto mais longo, o «ocidental» não é reputado, todavia, como texto original do
livro de Atos.
Trechos do livro
de Atos chamados de seções nós. A variante particular, que
hora consideramos, não teria grande importância, não fora o fato de que se
trata da primeira das chamadas «seções nós» deste livro. Supõe-se que, nessas
passagens, Lucas ter-se-ia reunido a Paulo e aos outros obreiros cristãos
mencionados, nas quais o livro se torna uma espécie de autobiografia, como
também uma narrativa histórica. Ordinariamente, as «seções nós» são
consideradas como as seguintes: At 16:10-17; 20:5-15; 21:1-18 e
27:1-28:16. Assim sendo, o ponto em que Lucas se juntou ao grupo evangelístico
em viagem teria sido na altura do décimo sexto capítulo. Mui provavelmente isso
é correto, do ponto de vista histórico, pois o versículo que ora consideramos,
fazendo parte apenas do chamado texto «ocidental», não deve ser reputado
representante do livro original de Atos.
11:29 E
os discípulos resolveram mondar, cada um conforme suas posses, socorro aos
irmãos que habitavam na Judéia;
Podemos apreciar
aqui a generosidade da igreja cristã de Antioquia. Havia muitos irmãos de
tendências legalistas, em Jerusalém, que dificilmente teriam prestado socorro
semelhante, se a situação fosse inversa, isto é, se em Antioquia é que os
cristãos estivessem sofrendo. Os preconceitos aleijam e tolhem os instintos
humanitários naturais, mas aqueles cristãos gentios primitivos não se
preocupavam com fronteiras nacionais.
Importância da
caridade.
«Um homem pode
ser famoso, bem-sucedido, rico, realizador de grandes feitos, mas, se não
cultivou e nem refinou esse instinto natural para ajudar aos outros, que sofrem
aflição, até que esse instinto se eleve acima de todos os outros e os domine,
qual soberano, então esse homem, como homem, é um fracasso. Essa é a
escola onde nós, os crentes, estamos sendo treinados; e embora reconheçamos o
fato de que, com frequência, temos falhado no teste, permitindo que outros
instintos, inferiores e mais aviltados, dominem sobre aquele sentimento
supremo, não obstante existem sinais de que temos feito algum progresso, tendo
crescido em nossa capacidade de amar.»(Theodore P. Ferris, in loc).
De acordo com a
filosofia extremamente pessimista do filósofo
alemão Schopenhauer, em que a própria existência é considerada como um mal
e em que o maior pecado de um homem consiste no fato de que «nasceu», a
simpatia, entretanto, é aceita como uma das virtudes e emoções positivas, que
são possíveis e permissíveis. Portanto, até mesmo no ambiente melancólico
daquela posição filosófica, a simpatia humana natural se eleva como uma
qualidade digna e necessária, porque todos estamos juntos nesse batel
da miséria humana, e, de alguma forma ou de outra, precisamos ser guardadores
de nossos irmãos. Jesus Cristo foi o supremo exemplo de como alguém deve cuidar
de seus irmãos. O livro de Tiago toca no âmago dessa verdade quando declara: «A
religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar
os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e a si mesmo guardar-se
incontaminado do mundo» (Tg 1:27).
Essa visita aos
órfãos e às viúvas significa procurar aliviar as suas necessidades,
contribuindo para o seu bem-estar, e não apenas fazer-lhes visitas ou
servir-lhes de companhia, embora isso também seja um aspecto importante.
No que concerne
à situação específica descrita por este texto, salienta Calvino (in loc): «E
essa gratidão não merecia pequeno louvor, pois os crentes de Antioquia pensavam
que deveriam ajudar a irmãos necessitados, de quem haviam recebido o evangelho. Porquanto
nada existe de mais acertado do que aqueles que têm semeado as realidades
espirituais, colham também coisas terrenas. Visto que qualquer um de nós se
inclina demasiadamente por prover para as suas próprias necessidades, todos
aqueles homens poderiam ter objetado: Por que não cuido antes de mim
mesmo? Porém, ao relembrarem-se eles de quão grandemente estavam
endividados para com os irmãos (da Judéia), omitindo essa preocupação pessoal,
voltaram-se para ajudá-los».
Há necessidade
de dar, para que alguém seja liberal. «Foi prometido, àqueles que consideram as
necessidades dos pobres, que Deus os preservaria em vida, e que seriam
bem-aventurados na terra (ver Sl 41:1,2). Muitos dão aos pobres pela razão
de que têm muito, de sobra; mas as Escrituras nos fornecem uma razão pela qual
deveríamos ser liberais, (é bom dar) a sete e a oito, porquanto
não sabemos que mal sobrevirá à terra. (Ver Ec 11:2)». (Matthew
Henry, in loc).
Como deveriam
ser feitas as contribuições aos pobres? Assim lemos nas
Escrituras: «...cada um conforme as suas posses...» Essa instrução
segue-se à injunção de Paulo, em I Co 16:2, que determina que cada um deve
contribuir «...conforme qualquer um deles houver prosperado...» O verbo
«prosperar» é tradução de uma palavra grega, «euporos», que indica o sentido
de «passar facilmente».Assim é transmitida a ideia de prosperidade,
mediante a figura simbólica de uma jornada fácil e favorável. Aqueles, pois,
que estão passando por uma viagem fácil e favorável, nesta vida, deveriam
interessar-se por tornar um pouco mais fácil essa jornada, para outros,
especialmente no caso de serem irmãos na fé.
Neste ponto
encontramos o começo da coleta para os «santos pobres de Jerusalém», o que,
posteriormente, ocupou parte tão proeminente nos labores do apóstolo Paulo. (Ver
At 24:17; Rm 15:25,26; I Co 16:1; II Co 9:1-15 e Gl 2:10). Essa prática
Paulo reputou como um vínculo de união entre a seção judaica e a seção
gentílica da igreja cristã. Muitos comentadores bíblicos acreditam que a
generosidade demonstrada pela igreja cristã de Jerusalém, ou sua vida de tipo
comunal, no princípio de sua história, segundo vemos no registro dos capítulos
segundo, quarto e quinto do livro de Atos, deixou aquela igreja com uma
estrutura econômica débil. Mui provavelmente isso expressa uma verdade, mas a
principal razão para essa crise foi a perseguição movida contra os
judeus crentes, porquanto muitos deles perderam suas propriedades e seus
recursos pecuniários, quando não perderam a própria vida. Os reiterados
períodos de escassez e fome vieram agravar enormemente a situação inteira,
piorando a situação de uma igreja que já se achava empobrecida.
11:30 o
que eles com efeito fizeram, enviando-o aos anciãos por mão de Barnabé e de
Saulo.
Não se há de
duvidar que Barnabé e Saulo desempenharam papel preponderante no
levantamento de fundos para socorro aos irmãos pobres de Jerusalém, e
providenciaram para que fosse atingida uma soma suficiente para ser de real
ajuda aos crentes daquela cidade. Posteriormente Paulo expandiu grandemente essa
obra de beneficência, conforme vemos nas referências bíblicas oferecidas no
último parágrafo dos comentários sobre o versículo anterior. Tudo isso, pois,
mostra-nos quão importante era, para o cristianismo primitivo, a prática das
esmolas. Essa ideia fora importada diretamente do judaísmo.
«...presbíteros...» Em todo o N.T., esta é a primeira
ocorrência desse vocábulo para indicar os líderes cristãos, como pregadores,
pastores e oficiais. Originalmente esses líderes é que tomavam conta das
igrejas de Jerusalém que se reuniam em casas particulares, conforme era
costumeiro na igreja cristã primitiva, antes que se iniciasse a ereção de
templos para o culto cristão. Na passagem de At 15:6,23, os «presbíteros»
figuram, juntamente com os apóstolos, numa espécie de concilio eclesiástico. É
bem possível que, a princípio, os presbíteros tivessem as mesmas funções que
cabiam aos presidentes das sinagogas judaicas, os quais eram
os principais elementos daquela estrutura eclesiástica antiga, embora, mui
provavelmente, não fossem originalmente consagrados por qualquer cerimônia
específica para ocuparem suas funções. Entretanto, não tardou muito para que se
generalizasse a ordenação ou consagração de tais ministros, porque até mesmo em
At 14:23 vemos que já estava estabelecido o costume de consagrar tais
ministros. Essa ordenação, outrossim, sem dúvida era efetuada através do rito da
imposição de mãos, novamente em imitação à prática judaica, quando da
consagração de seus oficiais eclesiásticos.
No trecho de
At 20:17, os termos «anciãos» e «bispos» são usados alternadamente, o que
também se pode verificar na passagem de Tt 1:5,7. Originalmente, sem dúvida
alguma não havia qualquer ofício distinto entre os «anciãos» e os «diáconos».
Mas gradualmente foi surgindo certa diferença, em que os «diáconos» passaram a
ocupar uma posição um tanto ou quanto inferior à dos «anciãos» ou «pastores», e
muito provavelmente ficaram encarregados de cuidar mais das necessidades
materiais das igrejas locais, ao passo que os anciões se fizeram os principais
líderes espirituais das mesmas. (Ver a totalidade do terceiro capítulo da
primeira epístola a Timóteo).
Os diáconos do
sexto capítulo do livro de Atos, apesar de terem sido um grupo distinto de
homens e receberem distintas responsabilidades, não equivalentes aos deveres
dos «anciãos», ou «bispos» e dos «diáconos» da organização eclesiástica cristã
posterior, foram exemplos antecipatórios da existência de oficiais que não
fossem apóstolos, dentro do organismo cristão. As qualificações para quaisquer
oficiais eclesiásticos subordinados eram mais ou menos idênticas para todos,
como também eram idênticas muitas de suas funções. Portanto, apesar do fato de
que o ofício dos «diáconos», no sexto capítulo do livro de Atos, não ser
tecnicamente igual à função dos «diáconos», na igreja cristã mais bem
organizada, suas qualificações e funções eram similares. E o ofício mais
antigo, assim sendo, antecipou o estabelecimento do ofício posterior, para
todos os efeitos práticos.
Bibliografia R.
N. Champlin
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PAZ DO SENHOR
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