DOCUMENTOS DA IGREJA I
Em 1873 ocorreu a descoberta de um documento que a partir de então revolucionou todo o nosso conhecimento acerca da Igreja Primitiva. Por ocasião de uma visita à biblioteca do Mosteiro do Santo Sepulcro em Constantinopla (Estambul), o metropolita de Nicomédia monsenhor Philoteo Bryennios encontrou um rolo de manuscrito grego datado de cerca de 1056 onde se achava um documento que até aquele momento era conhecido apenas pela menção que dele fazia aHistória Eclesiástica de Eusébio: oDidaquê. Publicado em 1883 depois de uma cuidadosa compilação crítica realizada por Harnack, foi o manuscrito posteriormente levado para Jerusalém e deixado na Biblioteca Patriarcal onde desde então tem sido constantemtne estudado por patrologistas, exegetas e historiadores da igreja.
A exemplo do Pastor de Hermas (120?) o Didaquê é um dos mais estranhos e fascinantes documentos da igreja primeva. É estranho porque praticamente nada se sabe ao seu respeito, seja quanto à sua autoria, local ou data de sua redação. Mas é fascinante porque, precisamente pela sua antiguidade, ele é o único canal que temos até o presente momento que liga a igreja apostólica e o período subapostólico. De fato, todas as pesquisas realizadas desde Harnack são unânimes em considerar oDidaquê como tendo sido escrita entre 90 e 120 d.C e apontam para as seguintes evidências: não há menção alguma a um cânon neotestamentário, isto é, os evangelhos e as epístolas não citados embora sejam parafraseados com frequência. Jesus é mencionado como Servo de Deus. Como diz Harnack: o escrito é realmente, conforme testifica o título, uma exposição dos ensinamentos que provêm de Cristo destinada aos cristãos (...) tal como, de acordo com a opinião do autor, os proclamaram e transmitiram os apóstolos (Vielhauer. Phillip. História da Literatura Cristã Primitiva, p. 748). A liturgia possui formas simples, sobretudo quanto ao batismo e não há uma dogmática que aponte para uma espécie de credo universal como depois se daria com o Credo Apostólico. Além disso, o livro já aparece parafraseado em outros textos do período subapostólico como nas Apologias de Aristides, de Justino e de Teófilo de Antioquia, e por fim, e de maneira particularmente digna de nota, na Epístola de Barnabé (70? - 150?). Eusébio, que cita o Didaquê com o título de As instituições dos Apóstolos, relacionava o texto entre os espúrios (História Eclesiástica 3.25). Já bem mais complexa é a relação do Didaquê com a Epístola de Barnabé, apócrifo do final do período apostólico que pelas suas semelhanças com esse escrito tem levado pesquisadores a deduzirem uma possível dependência do manual daquele escrito supastólico. Na verdade, essa dependência seria evidenciada no idéia dos dois caminhos mas que em Barnabéparece seguir a mesma linha de composição da Didaquê (cf 19-20 e Did 1) e poderia apontar para uma dependência intrínseca, não fosse o fato de que o texto deBarnabé fosse tão prolixo tem suas figuras de linguagem onde aparecem anjos de Deus e portadores da luz e anjos de Satanás (...) principe do presente tempo da iniquidade (Barnabé 18.1), e igualmente facciosa e parcimoniosa (não divulgueis a palavra de Deus entre pessoas impuras, Barnabé 18.4), incompatível com a linguagem simples e cheia de amor como aparece em Did 2.7). Mas hoje parece definitamente assegurada a tese de que ambos os textos são independentes entre si (Vielhauer ob cit, p.756). isso nos leva a outra questão? Quem seria seu autor e onde teria se dado a localização do livro e no caso de não ser autêntico, como explicar a dependência desse escrito do manuscrito apócrifo atribuído a Barnabé?
Se apenas tomarmos por base o texto, só poderemos deduzir uma resposta por meio de conclusões aproximadas: de acordo com Did 1, o autor conhece os mandamentos de Jesus porque os parafraseia constantemente. Por outro lado, no capítulo 2, há menção do Decálogo do qual ele também demonstra conhecimento. Já Did 4.2 parece denotar algum conhecimento da ética paulina pela sua aproximação com I Co 14.33, quando fala da necessidade do neófito estar na companhia dos fiéis. O catálogo de pecados e prevaricações que aparece em Did 5.1 também lembra muito os catálogos paulinos de vícios que aparecem nas pastorais. A exemplo de Mateus (28.17) recomenda o tríplice batismo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. De tudo isso, a conclusão da maioria dos exegetas é de que o Didaquê foi redigida por um judeu recém egresso ao cristianismo o que explica tanto o seu conhecimento do Antigo Testamento quanto da tradição e da ética cristã já que nessa altura ainda não é possível falar de um cânon neotestamentário. Como foi usado esse material e até onde o texto é obra do próprio didaquista é algo que nem mesma pesquisa crítico-textual tem uma resposta precisa: até onde vão as "fontes", diz Vielhauer, e onde fala o próprio didaquista, se existem intervenções de mãos estranhas e até que ponto o texto está intacto é difícil de se decidir decidir em cada caso (ob cit, p. 756). Sobre onde foi redigido, é inegável a proximidade de nosso autor com a tradição oriental de maneira que tanto a Síria (Antioquia ou Damasco) ou Péla, onde a comunidade cristã de Jerusalém se refugiou durante e depois da revolta de 66, podem reividicar para si a honra de ter sido uma delas o local de redação do manuscrito.
O teólogo alemão Adolf von Harnack (1851 - 1930) na época em que lecionava em Giessen, 1879/80.
O Didaquê começa com a afirmação dos dois caminhos o da vida e o da morte (o da luz e das trevas segundo Barnabé), A exposição do primeiro capítulo é toda parafraseada nos evangelhos, como o amor ao próximo, bênçãos sobre aqueles que amaldiçoam os crentes e oferecer a outra face. Já o refreio dos instintos, que reaparece com maior ênfase em Did 3.3 é possivelmente uma paráfrase paulina. Did 1.5 é clara paráfrase da parábola do Jovem Rico (Mt 19.23-30, Mc 10.23-31, Lc 18.24-30). O segundo capítulo é repetição do decálogo com prescrições sobre adultério, roubo, assassinato, necromancia, etc, adicionado a um preceito sobre a necessidade da proteção da vida da criança: não mate a criança no seio da sua mãe, nem depois que ela tenha nascido (2.2). Como o autor repete esse preceito outra vez em Did 5.2, deduz-se que ele realmente tinha a vida do infante na mais elevada conta ou que, possivelmente, estivessem havendo abortos ou infanticídios na comunidade. E como no primeiro capítulo, condena a avareza. Parece que os preceitos sobre o desapego aos bens materiais revelam uma tendência da comunidade primitiva para a comunhão dos bens e para uma forma primitiva de comunismo associativo que podem pressupor tanto a idéia de comunidade no sentido de unicidade da igreja, quanto também a esperança pela rápida realização da Parousia, o que lhes motivariam viver compartilhando tudo em comum, porque o final dos tempos era evidente. Mais paráfrases dos evangelhos como conselhos sobre a mansidão, a paciência e a rejeição dos murmuradores, são apresentadas em uma repetição no cap.3 (vv. 5-10).
As prescrições eucarísticas são talvez o ponto mais importante do Didaquê. Em Did 7.1 é recomendado o batismo tríplice em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.Se você não tem água corrente, batize em outra água; se não puder batizar em água fria, faça-o em água quente. Na falta de uma e outra, derrame três vezes água sobre a cabeça em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Antes dos batismo, tanto aquele que batiza como aquele que vai ser batizado, e se outros puderem também, observem o jejum. Àquele que vai ser batizado, você deverá ordenar jejum de um ou dois dias. (Did 7.2-4). Além disso, em Did 8.2-3 está prescrita não apenas a oração do Pai Nosso (o que prova que a comunidade cristã primitiva praticava e reverenciava a oração de Jesus já nessa época), como ainda a faziam com assiduidade, pelo menos três vezes ao dia (v.3). Interessante também é a fórmula litúrgica para a celebração da eucaristia: Celebrem a Eucaristia deste modo: Digam primeiro sobre o cálice: nós te aggradecemos Pai nosso, por causa da santa vinha do teu servo Davi, que nos revelaste por meio do teu servo Jesus. A Ti, a glória para sempre. Depois, digam sobre o pão partido: nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da vida e do conhecimento que nos revelaste por meio do teu servo Jesus. A Ti a glória para sempre. Do mesmo modo como este pão partido tinha sido semeado sobre as colinas, e depois recolhido para se tornar um, assim também a tua Igreja seja reunida desde os confins da terra no teu reino, porque tua é a glória e o poder por meio de Jesus Cristo para sempre (Did 9.1-4). Assim, fica evidenciado que a comunidade cristã só conhecia nessa época dois sacramentos, o batismo e a eucaristia e ambos eram tidos na mais elevada conta na liturgia cristã nesses dias avoengos e pelo que se lê em Did 14.1-2, a celebração eucarística se realizava praticamente em todos os cultos. Futuramente a Eucaristia na sua acepção mais simples será resgatada nas confissões de fé reformadas. Nos agradecimentos da celebração litúrgica, também chama atenção essa passagem: que a tua graça venha, e este mundo passe. Hosana ao Deus de Davi. Quem é fiel, venha, quem não é fiel, converta-se. Maranata. amém! (10.6). A comunidade não apenas espera pelaParousia como pede por ela com ansiedade e amor. Ela virtualmente vive o tempo do fim (Mt 24.14) na mais plena expectativa escatológica.
O autor do Didaquê mostra ser pessoa preocupada com a unidade doutrinária da sua comunidade. Somente são recebidos na comunidade os que ensinarem tudo o que foi dito antes, isto é, a Lei, os profetas e o Evangelho. (11.1). O apóstolo ou profeta deve ser recebido como mandado de Deus mas não por mais de um dia e só deverá sair com o alimento que o sustente até a cidade vizinha. Se ele ficar por até três dias ou pedir dinheiro, então é falso profeta (11.4-8). Nem todo o que fala inspirado é profeta a menos que ele viva de acordo como manda o Senhor (vv.8 e 10), o que evidencia uma preocupação com o testemunho como fator que corrobore o magistério do profeta. Ele precisa ser testemunha da verdade (Kiekegaard). Em Did 13.1-2 o autor defende que o profeta que se estabelece entre os cristãos é digno do seu alimento o que denota que ele conhecia, mesmo que por meio de outras tradições, o ensino paulino sobre a dignidade do sustento do obreiro (1 Tm 5.17-18) e recomenda que a comunidade escolha e sustente bispos e diáconos dignos do Senhor e que devem ser reconhecidos na mesma dignidade que os profetas e mestres (15.2). Insiste para que a comunidade persevere em oração: vigiem sobre a vida de vocês. Não deixem que suas lâmpadas se apaguem, nem soltem o cinto dos rins. Fiquem preparados, porque vocês não sabem a que hora o Senhor nosso vai chegar. (16.1). A perfeição de vida e de santidade é enaltecida e apontada como fator determinante para a preparação do crente para o fim (16.2) e como Cristo e Paulo, o didaquista fala dos falsos mestres e profetas que aparecerão no meio do rebanho. (16.3). A menção ao toque da trombeta como um dos sinais do tempo do fim (os outros dois são a abertura dos céus e a ressurreição dos mortos) que aparece em Did 16.6 é uma aparente paráfrase da Sétima Trombeta de Ap 11.15-19. Se for de fato pode ser a primeira menção do livro do Apocalipse na literatura subapostólica. Porém, o autor do Didaquê não crê que todos os mortos serão ressuscitados mas somente os santos estarão com Ele. (16.7).
Embora não seja propriamente uma confissão de fé mas apenas um texto de instrução de vida comunitária e celebração litúrgica, o Didaquê tem importância excepcional na história da Igreja por revelar o modo como a comunidade primitiva celebrava a Eucaristia, além de testemunhar a evolução do ministério sagrado da Igreja até chegar à forma que tomou em nossos dias. É um testemunho único do momento de transição do período apostólico para o subapostólico.
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