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domingo, 11 de setembro de 2016

Assemblies of God Brasil


                   AS ASSEMBLEIAS DE DEUS NO BRASIL




COMO CONCILIAR O APROFUNDAMENTO NA PALAVRA SEM EXTINGUIR O PODER DO ESPÍRITO SANTO.


INTRODUÇÃO

O grande avivalista norte-americano nascido no final século 18, Charles Finney, no prefácio de sua Teologia Sistemática, expõe claramente os onze objetivos a que se propõe a sua obra (classificada como curso, visto que ela consiste em aulas que ele ministrara). O objetivo de número três, diz exatamente o seguinte:

3. Escrevi para aqueles que se disponham a enfrentar a dificuldade de pensar e formar opiniões próprias acerca de questões teológicas. Não faz parte de meu alvo poupar meus alunos ou qualquer outra pessoa do trabalho de pensar intensamente. Caso desejasse fazê-lo, os assuntos discutidos tornariam abortivo tal empenho.1

Como todos sabemos, Finney passou pela experiência da glossolalia sendo então batizado no Espírito Santo. Tal experiência fornece uma pista do quanto há de equívoco na ideia de que existe uma dicotomia entre fervor espiritual e reflexão teológica. No objetivo de número sete, o avivalista novamente insiste:

Meu irmão, irmã, amigo: leia, estude, pense e leia novamente. Você foi feito para pensar. [O estudo da obra] Far-lhe-á pensar; desenvolver suas capacidades pelo estudo. Deus determinou que a religião exigisse pensar, pensar intenso, e desenvolvesse nossa capacidade de pensamento. A própria Bíblia é escrita em estilo tão condensado para exigir o mais intenso estudo. Não pretendo explicar a teologia de maneira que dispense o labor do pensamento. Não tenho habilidade para isso nem desejo fazê-lo.2 Infelizmente, a tradição evangélica pentecostal parece ter um fastio ao exercício de pensar e incorre no grave erro de hipervalorizar o aspecto emocional, confundindo-o com a “direção do Espírito”. Em outras palavras, pode-se dizer que uma “pequena minoria dentro dos círculos do Espírito promove o equilíbrio entre os aspectos experimentais e intelectuais da fé”.3 O entendimento mais comum que se vê é o de que a “letra mata e o espírito vivifica”.4 Infelizmente, esta porção escriturística é mais uma “vítima” da não-interpretação do texto. Ironicamente, a própria má interpretação ou imperícia hermenêutica de 2 Coríntios 3.6 serviu como base e fundamentação da defesa e apologia do obscurantismo. Por mais boa vontade que possa ter a pessoa que acredita que privar a igreja de ter conhecimento é algo piedoso, tal fato não deixa de prejudicar a comunidade de fé, pois isso a torna vulnerável e refém de pessoas inescrupulosas e mal intencionadas. Não ter conhecimento é algo que abre precedentes terríveis nas mãos de pessoas sem temor de Deus. Essas, na realidade, são as reais beneficiárias do “não saber” ou da incultura da congregação. Quanto menos os crentes souberem, melhor. Dessa forma, tais pessoas vão enganando incautos e manipulando as massas. A única forma de prevenir o povo desse tipo de ardil é ajustar o tom para que os pólos — reflexão e espiritualidade — sejam devidamente conjugados em uma única experiência.

I – O PERIGO DA POLARIZAÇÃO

A elitização do conhecimento sempre foi uma das armas da opressão, do totalitarismo e da ditadura. Este expediente é o mesmo para todas as formas de dominações, sejam elas políticas ou culturais, sejam elas trabalhistas ou religiosas. Os que monopolizam o conhecimento são seletivos na transmissão de informações e cuidam para que as pessoas só saibam aquilo que reforça ou apóia suas ideias. O próprio Senhor Jesus falou sobre isso (Mt 15.4-6; 23.1-4; Lc 11.52).

Sendo o saber objetivo um instrumento de libertação (vide a Reforma Protestante), não dá para entender o fastio epistemológico que muitos ainda nutrem na sociedade pós-moderna, a repugnância, aversão, tédio e o aborrecimento — de maneira deliberada — em relação ao saber. O que ocorre é que as pessoas se acostumam a uma vida subcultural — totalmente indigna para o cristão (Mc 12.30,33) — e têm dificuldade de entender a importância e o valor do conhecimento, pois acostumaram-se a contentar- se com àquilo que os outros lhes dão. Na esfera religiosa, muitas acabam “adorando o que não conhecem” (Jo 4.22), por falta de discernimento. Em nosso meio também existe gente assim. É possível ver esta rejeição transliterada em escusas, as mais absurdas possíveis. Por exemplo, a de uma pessoa que me disse que não queria ler a Bíblia, pois isso a tornaria ainda mais responsável diante de Deus, ou outra que achava que estudar trazia frieza espiritual, e sem contar com as mais “sinceras” e “francas” que dizem e afirmam categoricamente que não gostam de ler a Bíblia, pois acham a linguagem muito difícil. Para esses, a afirmação de Francis Schaeffer, de que o “Cristianismo histórico nunca realmente separou-se [do] conhecimento”5, soaria, no mínimo, como uma profanação. Mas um novo tempo tem chegado, e com ele o advento da tecnologia digital. Estamos vivendo uma verdadeira “revolução copernicana” em termos de informação. Entretanto, uma das maiores ambiguidades deste tempo pós-moderno é que a acriticidade pela falta de informação está dando lugar a uma outra, resultante do consumo irrefletido dos subprodutos da cultura popular, ou seja, o excesso de informação. De “anoréxicos culturais” migramos para o outro pólo e tornamo-nos “glutões culturais”.6 Como todos sabem, sempre que o fator polarização se instaura não é difícil constatar suas mazelas.

Com segurança pode-se afirmar que o tema proposto para essa reflexão é um dos mais difíceis das discussões que envolvem o assunto polarização. Há no ocidental uma tendência de ocupar extremos. Temos grandes dificuldades quando se trata de encontrar uma alternativa entre o “vício e o excesso”. Assim, parece-nos que as reações se resumem à “rejeição total” ou “adesão ingênua”. O problema é que não existe apenas polarização nesse sentido, ou seja, do “lado de fora”, por assim dizer. Infelizmente esse paradigma chamado polarização já se instaurou entre nós, cristãos. Encontramos dualismos e dicotomias do “lado de dentro” que provocam verdadeiros desarranjos na comunidade de fé. É possível dizer que temos, por falta de uma sólida compreensão bíblica, três grandes áreas de discussão tendo, em cada uma delas, ao menos dois blocos de crentes competindo no “cabo-de-guerra da fé”:

1) Usos e costumes: legalistas X irreverentes;
2) Espiritualidade: triunfalistas X céticos;
3) Teologia: antiintelectuais X pseudo-intelectuais.

Nem é preciso dizer que nenhum dos grupos tem razão ou sensatez. Ambos estão errados. É preciso buscar o caminho da superação, em que exista uma “terceira via”. Por parte daqueles que possuem um mínimo de bom senso, ainda não está certo se é possível ser um cristão instruído e, ao mesmo tempo, espiritual. Existe uma espécie de mito de que uma coisa não pode coexistir com a outra, sendo até mesmo alguns trechos das Escrituras citados para fundamentar essa polarização. Em seu Cristianismo Equilibrado, John Stott, fala acerca da polarização. O primeiro exemplo utilizado por ele é justamente esse que pressupõe uma dicotomia entre “intelecto e emoção”. O desprezo em relação ao primeiro é tratado por ele da seguinte forma:
Eu me sinto constrangido a dizer que o mais perigoso dos dois extremos é o antiintelectualismo e depois a entrega ao emocionalismo. Vemos isto em algumas pregações evangelísticas, que não consistem em outra coisa senão em um apelo para decisão com pouquíssima, ou nenhuma, pregação do Evangelho e pouca, ou nenhuma, argumentação com o povo a respeito das Escrituras, à maneira dos apóstolos.7

Sem querer generalizar, a maioria da pregação supostamente “ungida” ou “de fogo” que se ouve atualmente é uma mistura de salivação, altíssimos decibéis e auto-ajuda. Pouquíssimo se ouve falar do evangelho de Jesus Cristo. São mensagens triunfalistas, que abusam da alegorização do texto bíblico, não podendo ser enquadradas na categoria de sermões temáticos. São discursos pobres e desprovidos de qualquer raciocínio. O objetivo da maioria dessas mensagens é o convencimento do auditório à custa do suicídio da razão e com uma vergonhosa apelação emocional em nome do Espírito Santo de Deus. E é nesse ponto que vem a segunda análise de Stott:

A mesma tendência é evidente na atual busca de experiências emocionais, vividas de primeira mão, e na exaltação da experiência como critério da verdade, ao passo que a verdade deveria ser sempre o critério da experiência. O meu receio é que esta tendência seja um legado semicristianizado do existencialismo secular.

Quem nunca ouviu uma mensagem cujo tom parece querer impor que a experiência do pregador é que deve ser o critério da verdade e não a Escritura? Sem levar em conta o evangelho pragmático e individualista — ou existencialista como disse Stott — que existe na atualidade (as pessoas que se acostumaram a ouvir esse tipo de mensagem só buscam Jesus pensando em solucionar problemas pessoais), a fé cristã exige do indivíduo o perfeito entendimento da mensagem bíblica e atitudes muito bem refletidas (e não reflexas) e pensadas para que ele possa aceitá-la. Considerando que experiências têm valor pessoal, mas nunca normativo; o que pensar de inúmeras pessoas que acorrem às igrejas em busca da solução de seus conflitos baseadas em experiências de terceiros? Uma vez que a Bíblia “ensina que a nossa razão é parte da imagem divina na qual Deus nos criou”, e que “Ele é o Deus racional que nos fez seres racionais e nos deu uma revelação racional”, é temerário negar nossa racionalidade, pois isso equivaleria a “negar nossa humanidade, vindo a ser menos do que seres humanos”.9 É claro que não estou partindo da concepção tomista de que a razão não caiu, pois quando refiro-me a exercer a nossa capacidade racional, estou apenas alinhando-me ao pensamento ensinado na Escritura de que “cada área da vida cristã é dependente do uso cristão de nossas mentes”.10 Com esse raciocínio, John Stott propõe:

À luz desta ênfase bíblica [Sl 32.9; 1 Co 14.20; Is 26.3] a respeito do lugar da mente na vida cristã, o que é que devemos dizer para a geração moderna dos antiintelectuais, os emocionais? Sinto muito ter de dizer que eles estão se auto-proclamando intensamente, como sendo crentes mundanos. Pois “mundanismo” não é apenas uma questão (como fui ensinado a acreditar) de fumar, beber e dançar, nem tampouco aquela velha questão sobre embelezarse, ir a cinemas, usar minissaias, mas o espírito do século. Se absorvermos sem qualquer exame os caprichos do mundo (nesse caso, o existencialismo), sem que primeiro sujeitemos isto a uma rigorosa avaliação bíblica, já nos tornamos crentes mundanos.11

É exatamente dessa forma que as Escrituras determinam que devemos viver. Romanos 12.2 e Filipenses 4.8 são apenas dois desses exemplos que fundamentam essa conclusão. Cientes de que Deus nos criou como seres racionais e emocionais, não devemos supervalorizar um aspecto em detrimento do outro, mas saber que somos constituídos por ambos.

II – RAÍZES HISTÓRICAS DO ANTIINTELECTUALISMO PENTECOSTAL

O mestre em teologia e missionário no Equador, Rick Nañez, é uma das vozes pentecostais que vem denunciando a negligência com o uso de uma de nossas mais importantes faculdades humanas: a razão. Não obstante, a denúncia e a crítica, em sua obra Pentecostal de coração e mente, o referido autor não deixa de reconhecer as virtudes do movimento pentecostal:

Sem sombra de dúvida, o movimento pentecostal - carismático está cumprindo papel decisivo no resgate de multidões das águas congeladas da religião convencional, muitas vezes morta. Pessoalmente, sinto-me inclinado a acreditar que, por meio de sua soberania, Deus permitiu que muitos homens e mulheres (como os pentecostais do início do movimento) “abrissem os olhos”, identificassem, por intuição, as tendências do pensamento coletivo e se preparassem para fazer as balanças do humanismo mecânico na direção do peso de sua glória. Não posso afirmar com certeza, mas sei que algo muito semelhante ao movimento pentecostalcarismático foi necessário no exato momento em que ele surgiu no palco da história.12

Portanto, para que não paire nenhuma dúvida a respeito do autor, reafirmo que ele é pentecostal, foi ordenado ao ministério pastoral pela Assembleia de Deus em 1987, sendo então alguém que, do lado de “dentro”, reconhece àquilo que necessita ser ajustado. Aliás, esse é outro ponto que precisa ser tratado entre nós, a mania de alguns pseudoapologistas que só falam mal e apontam erros, contudo, não apresentam caminhos para equacionar os problemas, dando a impressão de que alimentam-se dos defeitos existentes entre nós para expor sua postura ranzinza e com isso ganhar notoriedade. Definitivamente, esse não é o caso de Rick Nañez, pois ele é, de fato, alguém comprometido com o desenvolvimento de uma mentalidade que conjugue, no movimento pentecostal, intelectualidade e espiritualidade:

De tudo mais que se possa dizer sobre esse movimento, uma coisa é certa: ele desempenha papel essencial em um renascimento religioso global e contemporâneo. Embora nosso movimento tenha lutado com desequilíbrios e excessos, e apesar de termos minimizado desnecessariamente a capacidade e importância da excelência do pensamento, sua mensagem tem sido uma lufada de ar fresco vivificador para os ossos totalmente secos e sem esperança da modernidade. Por essas razões, eu o escolhi como o meu movimento, o meu lar. Além do mais, uma vez que esse é um ambiente particular sagrado que Deus implantou, estimulou e no qual me usou, é com o senso do dever que falo e escrevo sobre os fundamentos íntimos de sua composição, que às vezes retarda a obra por meio dele.13

Amar não significar aceitar acrítica e passivamente tudo que acontece entre nós, ou fazer vistas grossas para os problemas que ameaçam roubar nossa influência e vitalidade espiritual, pelo contrário, quem ama cuida, zela e procura corrigir posturas equivocadas, justamente para manter a saúde do movimento. E é nesse sentido que faço referência a esse autor e a ele alinho-me, na intenção de pensar esse assunto. O próprio fato de o tema ter se tornado objeto de discussão em um evento histórico como esse, significa que existe a percepção do problema e o claro interesse em solucioná-lo a partir das reflexões que vierem à baila durante, e após, a exposição do assunto.

Antes de apresentar os fatos que parecem ter originado a postura antiintelectualista em nosso meio, é preciso fazer uma ressalva histórica para que nenhum pecado (contra a imagem ou epistemológico) seja cometido: O que os nossos pioneiros norteamericanos fizeram, certamente obedecia às suas consciências, e tinham uma finalidade positiva. A grande questão não é reconhecer que, como seres humanos condicionados historicamente, eles erraram em alguns aspectos ligados à intelectualidade e nós, igualmente, podemos estar incorrendo em muitos equívocos que a próxima geração terá que corrigir. O que não pode deixar de ser reconhecida, é a inegável verdade que não se pode olvidar dos equívocos ou esquecê-los como forma de “preservar os marcos antigos”. Em outras palavras, erro, mesmo que cometido involuntariamente, deve ser corrigido e não ignorado. Um claro exemplo bíblico é o de Apolo e Áquila e Priscila (At 18.24-28). Deveria o casal ser omisso em relação ao eloquente pregador, apenas por este ser popular e estar realizando a Obra do Senhor? Mesmo reconhecendo que era Deus quem o usava, Áquila e Priscila não excitaram em orientar o “varão eloquente e poderoso nas Escrituras”. A esse respeito, ensina-nos Stanley Horton em sua obra O Avivamento Pentecostal:

Milhões de dólares são investidos em programas de televisão, cuja abrangência nem sempre é a anunciada. A maioria dos descrentes muda rapidamente de canal quando o que está na tela é um programa religioso. E, penso que aqueles milhões de dólares seriam muito mais úteis se aplicados em escolas bíblicas. Os caríssimos equipamentos de estúdio e o luxuoso guarda-roupa dos apresentadores nos deixam incomodados, pois são claramente para dar a impressão de sucesso. Não digo que não se tire vantagem da mídia e da informática. [...] A tecnologia tem sido bem aproveitada por muitas escolas. Nada disso, porém, deve tomar o lugar daquilo que realmente necessitamos. O Pentecostalismo tem sido, desde o início, um movimento de restauração. Os pentecostais sustentam a mesma visão quando afirmam estar vivendo o vigésimo- nono capítulo de Atos. Então, o que tanto precisamos restaurar? Estaríamos desejando reconstituir os acontecimentos da rua Azusa? Não é provável que alcancemos a restauração imitando os irmãos daquela época.14

Horton conclui seu pensamento dizendo que não é preciso “imitar métodos”, mas sim, submetermos “a nossa vontade uns aos outros”. Diz ainda que “não precisamos reconstituir os acontecimentos do início do século” e que “Tampouco necessitamos copiar com exatidão o que está relatado no livro de Atos”.15 A dinâmica do Espírito nos círculos pentecostais é justamente corrigir a frieza do tradicionalismo (na metodologia eclesiástica e na aplicação da Palavra), fazendo com que não se transformem em empecilhos ao crescimento e à expansão do Reino. Assim, se os nossos predecessores no início do século passado, execravam a reflexão teológica e, com mais veemência, a intelectualidade, isso não significa que devamos reproduzir tal postura para mantermos o ardor espiritual acesso. Tal pensamento é anacrônico e um “pecado voluntário”.

Se Charles Parham acreditava que fora o Diabo quem o convencera de cursar medicina, esse é um pensamento exclusivamente pessoal que não encontra respaldo nem na Escritura, e muito menos no bom senso.16 Seymour, herdeiro das mesmas tendências antiintelectualistas, conseguiu êxito não apenas na disseminação do pentecostalismo, mas também na propagação do antiintelectualismo, através do jornal Apostolic Faith (Fé Apostólica). A grande pergunta que precisa ser respondida é: Por que, apesar de nossa origem comum, as Assembleias de Deus no Brasil (fundadas em 1911) e as Assembleias de Deus nos Estados Unidos (fundadas em 1914), possuem uma perspectiva de produção teológica tão distinta umas das outras, sendo as primeiras mais herdeiras e dependentes desse aspecto antiintelectualista do pensamento de Parham e Seymour (que inclusive eram norte-americanos) que as segundas? Outra questão, não menos importante, é: Por que nossa matriz teológica, somente muitos anos depois, passou a depender da América do Norte sem, contudo, copiar a postura norte-americana de “produzir” teologia?

A diferença parece estar, primeiramente, na interpretação do texto bíblico. Como ambos os grupos lidaram com a ciência hermenêutica e com a exegese do texto bíblico? Enquanto os norteamericanos muito cedo interessaram-se por esse aspecto, os pentecostais brasileiros começaram a se despertar há poucos anos, sendo ainda bastante tímido o desenvolvimento nessa área. Talvez seja por causa da chamada “Alta Crítica”, “crítica superior”, “crítica bíblica” ou “crítica textual” que surgiu o “temor” de se aplicar métodos científicos para o trabalho de interpretação bíblica. Infelizmente, essa “precaução” ensejou a oportunidade de se interpretar a Bíblia a partir da subjetividade, dos sentimentos e do “achismo”. Incrivelmente, os pentecostais brasileiros abriram mão da postura dos crentes bereanos, que foram elogiados por sua atitude com o exame da Bíblia Sagrada (At 17.11). Assim, a conquista reformista é agora desvalorizada por aqueles que mais foram beneficiados por ela. Como já foi dito, evidentemente que essa postura tem uma causa histórica. O grande problema é que, se naquele momento histórico a motivação dos nossos pioneiros era preservar o povo do perigo do esfriamento, atualmente, pessoas mal intencionadas se valem dessa abertura para manipular e enganar a Igreja, agindo de forma astuciosa, exatamente da maneira advertida por Paulo em Efésios 4.14. Diante dessa nova realidade, qual deve ser o nosso papel neste contexto? Não é agir conforme os versículos 11 a 13 de Efésios 4? O pentecostalismo precisa se libertar da chamada “interpretação espiritualizada” da Bíblia. Quantas aberrações são justificadas por interpretações descabidas, cujo único critério é o subjetivismo individual e manipulador? Sobre esse assunto, Virkler cita o teólogo Alexander Carson que afirma categoricamente: “Homem algum tem o direito de dizer, como alguns costumam fazê-lo: ‘O Espírito me diz que tal ou tal é o significado de uma passagem’. Como pode estar ele seguro de que é o Espírito Santo, e não um espírito enganador, a não ser pela evidência de que a interpretação é o sentido legítimo das palavras?”17 Todos os fundadores de seitas e as maiores heresias que existem se esgueiram na zona cinzenta da “criatividade interpretativa” do texto bíblico. Como disse Rick Nañez: Sem as Escrituras e o auxílio do Espírito, estamos doutrinária e espiritualmente perdidos. Todavia, onde quer que o ensino e a história tenham sido negligenciados, foi inevitável o surgimento de um grande número de doutrinas contraditórias. O ato de se abster da assim chamada aventura acadêmica leva, na melhor das hipóteses, à reinvenção da roda e, na pior, a bases duvidosas que mudam com cada corrente de opinião e “liderança especial”. Enquanto cumprem o “juramento hipocrático espiritual”, a maioria dos ativistas do “a Bíblia e nada mais” entregaram-se à hipocrisia, ao insistirem que esperam que os outros tomem as suas interpretações da verdade como a única verdade.18

Nesse aspecto, fico com o que escreveu R. L. Brant, pastor pentecostal por aproximadamente 60 anos e presbítero executivo das Assembleias de Deus norte-americanas, no prefácio de sua excelente obra Falar em línguas – O maior dom?: “Em sua dimensão mais ampla, a verdade é tão vasta quanto o próprio Deus. Assim sendo, nenhum homem pode esperar ser o detentor de toda a verdade. No máximo, podemos enxergar através de um espelho escurecido”. E, no outro parágrafo arrematou: “Todavia, a parte necessária e compreensível da verdade pode e deve ser conhecida”.19

Dentre os maiores perigos da “livre interpretação”, três deles são dignos de destaque: 1) apropriar-se indebitamente de promessas; 2) ficar com a interpretação que mais agrada; e 3) induzir a Bíblia a dizer o que não está escrito. E é justamente para não permitir que essas heresias se propaguem em nossos arraiais (em nome de interpretações supostamente reveladas pelo Espírito Santo) que fomos colocados, pelo Senhor, na Igreja para a protegermos (Ef 4.11-16).

Outra discussão que merece destaque é justamente saber se o ato de adorar a Deus implica em ignorância? É preciso ser inculto para adorar ao Senhor “em espírito e em verdade”? Essa percepção parece não ser apenas equivocada como pervertida. À mulher samaritana, na beira do poço de Jacó, o Senhor Jesus Cristo disse, implicitamente, que era necessário conhecer a quem adoramos, pois adoração sem conhecimento não tem sentido e valor. Ele disse que os samaritanos adoravam o que não conheciam (Jo 4.22). Quando o apóstolo Paulo fala do culto racional (Rm 12.1), não há como fugir da verdade contida no texto: só pode adorar a Deus aqueles que possuem uma consciência de quem Ele é! O culto não pode ser algo mecânico e rotineiro, antes, para prestá-lo eficientemente, é imprescindível o uso da inteligência, da lucidez e principalmente do sentimento de gratidão e reconhecimento do “tamanho” da dívida que o sangue de Jesus pagou! Acima de tudo existe ainda o mais importante propósito: o ser humano — assim como todas as coisas — foi criado para a glória de Deus. Diferentemente de outras religiões, o cristianismo — em sua acepção mais essencial, e não banalizada institucionalmente com a multiplicidade de denominações — promove o ser humano e não exige a sua anulação ou rebaixamento (como se animal fosse), a fim de satisfazer algum capricho ascético ou extático de uma divindade narcisista. Distintamente das outras, ele não requer intelectualidade acima da média, mas também não aceita irracionalidade, pois para decidir-se por seguir a Jesus Cristo, é preciso estar plenamente cônscio da realidade do próprio pecado e reconhecer que só o sacrifício vicário e expiatório da cruz é que pode salvar.

Na maioria das vezes percebe-se que a grande maioria das mensagens que ouvimos, dos estudos bíblicos que participamos e dos livros que lemos, que o método utilizado pela pessoa que as produzem, carrega um alto nível de alegorização do texto bíblico, unido ao fator “revelação miraculosa” da mensagem. Tais posturas se imiscuem e são fundamentadas em um elemento altamente efi caz na persuasão da audiência, porém extremamente perigoso: o apelo emocional. O grande e terrível problema desse condicionamento acrítico, é que existem, como disse Rick Nañez, “perigos associados a doutrinas fragmentadas de declarações proféticas e por demais dependentes de emoção”.20 O mesmo autor, citando Gordon Anderson (líder pentecostal), diz que os perigos de se recorrer a esses recursos — doutrinas fragmentadas por declarações proféticas e dependentes de emoção — são justamente levar a igreja à “‘aceitação inquestionável de líderes, doutrinas e práticas que deveriam ser rejeitados’”.21

III – REVISÃO TEOLÓGICA

Na já citada obra Falar em línguas – O maior dom? de R. L. Brant, o seu primeiro capítulo é aberto dizendo que no “vasto campo do movimento pentecostal, a necessidade primária é o conhecimento”.22 Isso porque, segundo o mesmo autor o “conhecimento é extremamente importante” e que nossa “fé depende inteiramente dele, exatamente como um arranha-céu depende de seu alicerce”. Ele chega a citar que o apóstolo “Paulo também entendia que o conhecimento tem uma importante relação com a fé, e que sem ele, a fé seria impossível”.23 Antes de encerrar o seu pensamento, o autor diz que é através da “Palavra escrita e elucidada pelo Espírito, [que] o crente adquire o conhecimento”. Assim, a estrutura apresentada por Brant, fica sendo a seguinte:

A fé, por sua vez, determina a experiência espiritual; a experiência estabelece os limites para o ministério. Portanto, a ordem é: 1) conhecimento, 2) fé, 3) experiência, e 4) ministério. E esta ordem é fi xa. O conhecimento é o ponto de partida na escada do ministério espiritual eficaz. Nunca a fé. A fé pressupõe o conhecimento, e precede a experiência. Estes são os degraus do ministério espiritual.24

Uma vez que a absurda ideia de que o texto de 2 Coríntios 3.6 fundamentava a “doutrina da incultura”, sendo, portanto, um erro hermenêutico, é preciso reconhecer que a realidade não é dada. Assim, se realmente existe essa disputa entre espiritualidade e reflexão teológica, ou entre fervor e maturidade intelectual, é obrigatório que, identificada a origem dessa dicotomia, venhamos a suprimi-la, pois uma vez que tal postura não é natural, dada ou orgânica, mas, pelo contrário, foi construída, é possível corrigi- la. É preciso repensá-la pela verdade colocada pelo teólogo Alberto Roldán:

Toda prática religiosa, [...], implica a adoção, consciente ou inconsciente, de tendências teológicas e posturas ideológicas que é preciso aquilatar. Por isso insistimos em que a teologia não é algo ‘caído do céu’, mas o produto de uma reflexão permanente a partir de uma situação concreta, estabelecendo um ponto entre a informação bíblica e nossa situação.25

É preciso entender que a teologia é uma reflexão bíblica da comunidade cristã que está inserida dentro de um determinado contexto. Como não há um apartheid imaginário que nos imuniza contra as influências do tempo em que estamos vivendo, a leitura da Escrituras fica condicionada a determinado período histórico, até porque, o intérprete precisa estabelecer um ponto de contato com o que diz a Palavra e o tempo em que ele está inserido. John Stott chega a afirmar que “nosso temperamento tem mais influência na nossa teologia do que geralmente imaginamos ou admitimos”. Isso soa demasiadamente estranho, pois, continua Stott, embora “a nossa compreensão da verdade bíblica dependa da iluminação do Espírito Santo, ela é inevitavelmente colorida pelo tipo de pessoa que somos, pela época 0610166 apostila que vivemos e pela cultura a que pertencemos”.26 Como disse certa vez o já citado teólogo Alberto Roldán:

Como evangélicos temos um postulado de fé básico e insubstituível: a Bíblia, como Palavra de Deus, é a única autoridade em matéria de fé e doutrina, de modo que toda reflexão teológica deve estar aberta à crítica por esta única Palavra de Deus. Uma pergunta para pensarmos seria: O que devemos fazer quando um texto bíblico ameaça o sistema teológico que adotamos? É óbvio que há duas alternativas: alterar o texto ou alterar o sistema. Cada um de nós terá de fazer sua própria opção.27

Finney é tão grave em sua crítica a esse respeito, que chega a afirmar que qualquer “tentativa não inspirada de esboçar para a Igreja um padrão de opinião que possa ser considerado uma exposição inquestionável da Palavra de Deus não só é ímpia em si, como também uma admissão tácita do dogma fundamental do papado”. Segundo ele, é “absurdo na teologia como seria em qualquer outro ramo da ciência, e tão prejudicial e entorpecente quanto absurdo e ridículo”.28 Sua conclusão é tão enfática, mas não sem explicação:

10. Ainda não consegui estereotipar minhas opiniões teológicas e parei de pensar consegui-lo algum dia. A idéia é absurda. Nada, senão um intelecto onisciente, pode continuar mantendo uma identidade precisa de concepções e opiniões. Mentes finitas, a menos que adormecidas ou entorpecidas por preconceitos, devem avançar no conhecimento. A descoberta de uma nova verdade modifi cará concepções e opiniões antigas, e talvez esse processo não tenha fi m em mentes finitas, qualquer que seja o mundo. A verdadeira coerência cristã não consiste em estereotipar nossas opiniões e concepções e em recusar-nos a fazer qualquer progresso para não sermos acusados de mudança, mas que consiste em manter a mente aberta para receber os raios da verdade por todos os lados e em mudar nossas opiniões, linguagem e prática na freqüência e na velocidade com que conseguimos obter informações complementares. Chamo-o de coerência cristã porque só essa trilha está de acordo com uma confissão cristã. Uma confissão cristã implica investigação contínua e mudança de opinião e prática em correspondência ao conhecimento crescente. Nenhum cristão, portanto, e nenhum teólogo deve temer uma mudança em suas concepções, linguagem ou práticas em conformidade com uma luz crescente. A predominância desse temor manteria o mundo no mínimo numa imobilidade perpétua, e todos os objetos da ciência e, por conseguinte, todos os aperfeiçoamentos tornar-se-iam impossíveis.29

IV – APROFUNDAMENTO NA PALAVRA E PODER DO ESPÍRITO SANTO
O já citado Gary B. McGee, dissertando sobre o Panorama Histórico (do Movimento Pentecostal e, especificamente, da Assembleia de Deus norte-americana), ao falar sobre a preservação da doutrina até 1950 (e depois após 1950), diz que é justamente o fato de encaminhar “os cristãos a respeito de uma vida madura no Espírito, [que] ajuda [a] explicar a grande prioridade atribuída às publicações pentecostais”.30 Em outras palavras, foi justamente visando a maturidade espiritual que a igreja norteamericana investiu nesse aspecto. Falando acerca do envolvimento dos pentecostais com o estudo e a pesquisa aprofundados que cada vez mais a liderança norte-americana fazia, McGee revela com destaque um nome que muito tem a falar a todos nós:

Embora muitos tivessem tido, desde o início, preocupações com a intelectualização da fé, a nova estirpe de instrutores foi um exemplo de equilíbrio entre a espiritualidade pentecostal e os estudos acadêmicos. Um desses professores, Stanley M. Horton, havia se formado em línguas bíblicas e Antigo Testamento, no Seminário Teológico de Gordon-Conwell, na Faculdade de Divindades de Harvad, e no Seminário Teológico Batista Central. No decorrer dos anos, Horton começou a demonstrar notável influência sobre a denominação mediante os seus ensinos, livros (O Que a Bíblia Diz Sobre o Espírito Santo [publicado pela CPAD]), artigos em revistas e jornais, e contribuições ao currículo da Escola Dominical para adultos.31

Em nosso país essa lista pode ser ampliada de maneira extensa, sem nenhuma perda de fervor espiritual por parte daqueles que se dedicam ao estudo mais profundo das Escrituras Sagradas, incluindo-se as línguas originais e outros aspectos técnicos. Acredito até que seja o momento de se definir o que é ser fervoroso e espiritual. O que é aprofundar-se na Palavra senão obedecer ao que o próprio Deus disse através de Oseias 6.3 e do apóstolo Pedro em sua segunda epístola, capítulo 3, versículo 18? E o que Jesus Cristo disse também em Mateus 22.29? 

Fonte: Texto escrito para o Encontro de Reflexão Teológica do Movimento Pentecostal - Assembleia de Deus em Campinas - SP

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