COMO CONCILIAR O APROFUNDAMENTO NA PALAVRA SEM
EXTINGUIR O PODER DO ESPÍRITO SANTO.
INTRODUÇÃO
O grande avivalista
norte-americano nascido no final século 18, Charles Finney, no prefácio de sua
Teologia Sistemática, expõe claramente os onze objetivos a que se propõe a sua
obra (classificada como curso, visto que ela consiste em aulas que ele
ministrara). O objetivo de número três, diz exatamente o seguinte:
3. Escrevi para aqueles
que se disponham a enfrentar a dificuldade de pensar e formar opiniões próprias
acerca de questões teológicas. Não faz parte de meu alvo poupar meus alunos ou
qualquer outra pessoa do trabalho de pensar intensamente. Caso desejasse
fazê-lo, os assuntos discutidos tornariam abortivo tal empenho.1
Como todos sabemos,
Finney passou pela experiência da glossolalia sendo então batizado no Espírito
Santo. Tal experiência fornece uma pista do quanto há de equívoco na ideia de
que existe uma dicotomia entre fervor espiritual e reflexão teológica. No objetivo
de número sete, o avivalista novamente insiste:
Meu irmão, irmã, amigo:
leia, estude, pense e leia novamente. Você foi feito para pensar. [O estudo da
obra] Far-lhe-á pensar; desenvolver suas capacidades pelo estudo. Deus
determinou que a religião exigisse pensar, pensar intenso, e desenvolvesse
nossa capacidade de pensamento. A própria Bíblia é escrita em estilo tão
condensado para exigir o mais intenso estudo. Não pretendo explicar a teologia
de maneira que dispense o labor do pensamento. Não tenho habilidade para isso
nem desejo fazê-lo.2 Infelizmente, a tradição evangélica pentecostal parece ter
um fastio ao exercício de pensar e incorre no grave erro de hipervalorizar o
aspecto emocional, confundindo-o com a “direção do Espírito”. Em outras palavras,
pode-se dizer que uma “pequena minoria dentro dos círculos do Espírito promove
o equilíbrio entre os aspectos experimentais e intelectuais da fé”.3 O
entendimento mais comum que se vê é o de que a “letra mata e o espírito
vivifica”.4 Infelizmente, esta porção escriturística é mais uma “vítima” da
não-interpretação do texto. Ironicamente, a própria má interpretação ou
imperícia hermenêutica de 2 Coríntios 3.6 serviu como base e fundamentação da
defesa e apologia do obscurantismo. Por mais boa vontade que possa ter a pessoa
que acredita que privar a igreja de ter conhecimento é algo piedoso, tal fato
não deixa de prejudicar a comunidade de fé, pois isso a torna vulnerável e
refém de pessoas inescrupulosas e mal intencionadas. Não ter conhecimento é
algo que abre precedentes terríveis nas mãos de pessoas sem temor de Deus.
Essas, na realidade, são as reais beneficiárias do “não saber” ou da incultura
da congregação. Quanto menos os crentes souberem, melhor. Dessa forma, tais
pessoas vão enganando incautos e manipulando as massas. A única forma de
prevenir o povo desse tipo de ardil é ajustar o tom para que os pólos —
reflexão e espiritualidade — sejam devidamente conjugados em uma única
experiência.
I – O PERIGO DA
POLARIZAÇÃO
A elitização do
conhecimento sempre foi uma das armas da opressão, do totalitarismo e da
ditadura. Este expediente é o mesmo para todas as formas de dominações, sejam
elas políticas ou culturais, sejam elas trabalhistas ou religiosas. Os que
monopolizam o conhecimento são seletivos na transmissão de informações e cuidam
para que as pessoas só saibam aquilo que reforça ou apóia suas ideias. O
próprio Senhor Jesus falou sobre isso (Mt 15.4-6; 23.1-4; Lc 11.52).
Sendo o saber objetivo um
instrumento de libertação (vide a Reforma Protestante), não dá para entender o
fastio epistemológico que muitos ainda nutrem na sociedade pós-moderna, a
repugnância, aversão, tédio e o aborrecimento — de maneira deliberada — em
relação ao saber. O que ocorre é que as pessoas se acostumam a uma vida subcultural
— totalmente indigna para o cristão (Mc 12.30,33) — e têm dificuldade de
entender a importância e o valor do conhecimento, pois acostumaram-se a
contentar- se com àquilo que os outros lhes dão. Na esfera religiosa, muitas
acabam “adorando o que não conhecem” (Jo 4.22), por falta de discernimento. Em
nosso meio também existe gente assim. É possível ver esta rejeição
transliterada em escusas, as mais absurdas possíveis. Por exemplo, a de uma
pessoa que me disse que não queria ler a Bíblia, pois isso a tornaria ainda
mais responsável diante de Deus, ou outra que achava que estudar trazia frieza
espiritual, e sem contar com as mais “sinceras” e “francas” que dizem e afirmam
categoricamente que não gostam de ler a Bíblia, pois acham a linguagem muito difícil.
Para esses, a afirmação de Francis Schaeffer, de que o “Cristianismo histórico
nunca realmente separou-se [do] conhecimento”5, soaria, no mínimo, como uma
profanação. Mas um novo tempo tem chegado, e com ele o advento da tecnologia
digital. Estamos vivendo uma verdadeira “revolução copernicana” em termos de
informação. Entretanto, uma das maiores ambiguidades deste tempo pós-moderno é
que a acriticidade pela falta de informação está dando lugar a uma outra,
resultante do consumo irrefletido dos subprodutos da cultura popular, ou seja,
o excesso de informação. De “anoréxicos culturais” migramos para o outro pólo e
tornamo-nos “glutões culturais”.6 Como todos sabem, sempre que o fator
polarização se instaura não é difícil constatar suas mazelas.
Com segurança pode-se
afirmar que o tema proposto para essa reflexão é um dos mais difíceis das
discussões que envolvem o assunto polarização. Há no ocidental uma tendência de
ocupar extremos. Temos grandes dificuldades quando se trata de encontrar uma
alternativa entre o “vício e o excesso”. Assim, parece-nos que as reações se
resumem à “rejeição total” ou “adesão ingênua”. O problema é que não existe
apenas polarização nesse sentido, ou seja, do “lado de fora”, por assim dizer.
Infelizmente esse paradigma chamado polarização já se instaurou entre nós,
cristãos. Encontramos dualismos e dicotomias do “lado de dentro” que provocam
verdadeiros desarranjos na comunidade de fé. É possível dizer que temos, por
falta de uma sólida compreensão bíblica, três grandes áreas de discussão tendo,
em cada uma delas, ao menos dois blocos de crentes competindo no
“cabo-de-guerra da fé”:
1) Usos e costumes:
legalistas X irreverentes;
2) Espiritualidade:
triunfalistas X céticos;
3) Teologia:
antiintelectuais X pseudo-intelectuais.
Nem é preciso dizer que
nenhum dos grupos tem razão ou sensatez. Ambos estão errados. É preciso buscar
o caminho da superação, em que exista uma “terceira via”. Por parte daqueles
que possuem um mínimo de bom senso, ainda não está certo se é possível ser um
cristão instruído e, ao mesmo tempo, espiritual. Existe uma espécie de mito de
que uma coisa não pode coexistir com a outra, sendo até mesmo alguns trechos
das Escrituras citados para fundamentar essa polarização. Em seu Cristianismo
Equilibrado, John Stott, fala acerca da polarização. O primeiro exemplo
utilizado por ele é justamente esse que pressupõe uma dicotomia entre
“intelecto e emoção”. O desprezo em relação ao primeiro é tratado por ele da
seguinte forma:
Eu me sinto constrangido
a dizer que o mais perigoso dos dois extremos é o antiintelectualismo e depois
a entrega ao emocionalismo. Vemos isto em algumas pregações evangelísticas, que
não consistem em outra coisa senão em um apelo para decisão com pouquíssima, ou
nenhuma, pregação do Evangelho e pouca, ou nenhuma, argumentação com o povo a
respeito das Escrituras, à maneira dos apóstolos.7
Sem querer generalizar, a
maioria da pregação supostamente “ungida” ou “de fogo” que se ouve atualmente é
uma mistura de salivação, altíssimos decibéis e auto-ajuda. Pouquíssimo se ouve
falar do evangelho de Jesus Cristo. São mensagens triunfalistas, que abusam da
alegorização do texto bíblico, não podendo ser enquadradas na categoria de
sermões temáticos. São discursos pobres e desprovidos de qualquer raciocínio. O
objetivo da maioria dessas mensagens é o convencimento do auditório à custa do
suicídio da razão e com uma vergonhosa apelação emocional em nome do Espírito
Santo de Deus. E é nesse ponto que vem a segunda análise de Stott:
A mesma tendência é
evidente na atual busca de experiências emocionais, vividas de primeira mão, e
na exaltação da experiência como critério da verdade, ao passo que a verdade
deveria ser sempre o critério da experiência. O meu receio é que esta tendência
seja um legado semicristianizado do existencialismo secular.
Quem nunca ouviu uma
mensagem cujo tom parece querer impor que a experiência do pregador é que deve
ser o critério da verdade e não a Escritura? Sem levar em conta o evangelho
pragmático e individualista — ou existencialista como disse Stott — que existe
na atualidade (as pessoas que se acostumaram a ouvir esse tipo de mensagem só
buscam Jesus pensando em solucionar problemas pessoais), a fé cristã exige do
indivíduo o perfeito entendimento da mensagem bíblica e atitudes muito bem
refletidas (e não reflexas) e pensadas para que ele possa aceitá-la.
Considerando que experiências têm valor pessoal, mas nunca normativo; o que
pensar de inúmeras pessoas que acorrem às igrejas em busca da solução de seus
conflitos baseadas em experiências de terceiros? Uma vez que a Bíblia “ensina
que a nossa razão é parte da imagem divina na qual Deus nos criou”, e que “Ele
é o Deus racional que nos fez seres racionais e nos deu uma revelação
racional”, é temerário negar nossa racionalidade, pois isso equivaleria a
“negar nossa humanidade, vindo a ser menos do que seres humanos”.9 É claro que
não estou partindo da concepção tomista de que a razão não caiu, pois quando
refiro-me a exercer a nossa capacidade racional, estou apenas alinhando-me ao
pensamento ensinado na Escritura de que “cada área da vida cristã é dependente
do uso cristão de nossas mentes”.10 Com esse raciocínio, John Stott propõe:
À luz desta ênfase
bíblica [Sl 32.9; 1 Co 14.20; Is 26.3] a respeito do lugar da mente na vida
cristã, o que é que devemos dizer para a geração moderna dos antiintelectuais,
os emocionais? Sinto muito ter de dizer que eles estão se auto-proclamando
intensamente, como sendo crentes mundanos. Pois “mundanismo” não é apenas uma
questão (como fui ensinado a acreditar) de fumar, beber e dançar, nem tampouco
aquela velha questão sobre embelezarse, ir a cinemas, usar minissaias, mas o
espírito do século. Se absorvermos sem qualquer exame os caprichos do mundo
(nesse caso, o existencialismo), sem que primeiro sujeitemos isto a uma
rigorosa avaliação bíblica, já nos tornamos crentes mundanos.11
É exatamente dessa forma
que as Escrituras determinam que devemos viver. Romanos 12.2 e Filipenses 4.8
são apenas dois desses exemplos que fundamentam essa conclusão. Cientes de que
Deus nos criou como seres racionais e emocionais, não devemos supervalorizar um
aspecto em detrimento do outro, mas saber que somos constituídos por ambos.
II – RAÍZES HISTÓRICAS DO
ANTIINTELECTUALISMO PENTECOSTAL
O mestre em teologia e
missionário no Equador, Rick Nañez, é uma das vozes pentecostais que vem
denunciando a negligência com o uso de uma de nossas mais importantes
faculdades humanas: a razão. Não obstante, a denúncia e a crítica, em sua obra
Pentecostal de coração e mente, o referido autor não deixa de reconhecer as
virtudes do movimento pentecostal:
Sem sombra de dúvida, o
movimento pentecostal - carismático está cumprindo papel decisivo no resgate de
multidões das águas congeladas da religião convencional, muitas vezes morta.
Pessoalmente, sinto-me inclinado a acreditar que, por meio de sua soberania,
Deus permitiu que muitos homens e mulheres (como os pentecostais do início do
movimento) “abrissem os olhos”, identificassem, por intuição, as tendências do
pensamento coletivo e se preparassem para fazer as balanças do humanismo
mecânico na direção do peso de sua glória. Não posso afirmar com certeza, mas
sei que algo muito semelhante ao movimento pentecostalcarismático foi
necessário no exato momento em que ele surgiu no palco da história.12
Portanto, para que não
paire nenhuma dúvida a respeito do autor, reafirmo que ele é pentecostal, foi
ordenado ao ministério pastoral pela Assembleia de Deus em 1987, sendo então
alguém que, do lado de “dentro”, reconhece àquilo que necessita ser ajustado.
Aliás, esse é outro ponto que precisa ser tratado entre nós, a mania de alguns
pseudoapologistas que só falam mal e apontam erros, contudo, não apresentam
caminhos para equacionar os problemas, dando a impressão de que alimentam-se
dos defeitos existentes entre nós para expor sua postura ranzinza e com isso
ganhar notoriedade. Definitivamente, esse não é o caso de Rick Nañez, pois ele
é, de fato, alguém comprometido com o desenvolvimento de uma mentalidade que
conjugue, no movimento pentecostal, intelectualidade e espiritualidade:
De tudo mais que se possa
dizer sobre esse movimento, uma coisa é certa: ele desempenha papel essencial
em um renascimento religioso global e contemporâneo. Embora nosso movimento
tenha lutado com desequilíbrios e excessos, e apesar de termos minimizado
desnecessariamente a capacidade e importância da excelência do pensamento, sua
mensagem tem sido uma lufada de ar fresco vivificador para os ossos totalmente
secos e sem esperança da modernidade. Por essas razões, eu o escolhi como o meu
movimento, o meu lar. Além do mais, uma vez que esse é um ambiente particular
sagrado que Deus implantou, estimulou e no qual me usou, é com o senso do dever
que falo e escrevo sobre os fundamentos íntimos de sua composição, que às vezes
retarda a obra por meio dele.13
Amar não significar
aceitar acrítica e passivamente tudo que acontece entre nós, ou fazer vistas
grossas para os problemas que ameaçam roubar nossa influência e vitalidade
espiritual, pelo contrário, quem ama cuida, zela e procura corrigir posturas
equivocadas, justamente para manter a saúde do movimento. E é nesse sentido que
faço referência a esse autor e a ele alinho-me, na intenção de pensar esse
assunto. O próprio fato de o tema ter se tornado objeto de discussão em um
evento histórico como esse, significa que existe a percepção do problema e o
claro interesse em solucioná-lo a partir das reflexões que vierem à baila
durante, e após, a exposição do assunto.
Antes de apresentar os
fatos que parecem ter originado a postura antiintelectualista em nosso meio, é
preciso fazer uma ressalva histórica para que nenhum pecado (contra a imagem ou
epistemológico) seja cometido: O que os nossos pioneiros norteamericanos
fizeram, certamente obedecia às suas consciências, e tinham uma finalidade
positiva. A grande questão não é reconhecer que, como seres humanos
condicionados historicamente, eles erraram em alguns aspectos ligados à
intelectualidade e nós, igualmente, podemos estar incorrendo em muitos
equívocos que a próxima geração terá que corrigir. O que não pode deixar de ser
reconhecida, é a inegável verdade que não se pode olvidar dos equívocos ou
esquecê-los como forma de “preservar os marcos antigos”. Em outras palavras,
erro, mesmo que cometido involuntariamente, deve ser corrigido e não ignorado.
Um claro exemplo bíblico é o de Apolo e Áquila e Priscila (At 18.24-28).
Deveria o casal ser omisso em relação ao eloquente pregador, apenas por este
ser popular e estar realizando a Obra do Senhor? Mesmo reconhecendo que era
Deus quem o usava, Áquila e Priscila não excitaram em orientar o “varão
eloquente e poderoso nas Escrituras”. A esse respeito, ensina-nos Stanley
Horton em sua obra O Avivamento Pentecostal:
Milhões de dólares são
investidos em programas de televisão, cuja abrangência nem sempre é a
anunciada. A maioria dos descrentes muda rapidamente de canal quando o que está
na tela é um programa religioso. E, penso que aqueles milhões de dólares seriam
muito mais úteis se aplicados em escolas bíblicas. Os caríssimos equipamentos
de estúdio e o luxuoso guarda-roupa dos apresentadores nos deixam incomodados,
pois são claramente para dar a impressão de sucesso. Não digo que não se tire
vantagem da mídia e da informática. [...] A tecnologia tem sido bem aproveitada
por muitas escolas. Nada disso, porém, deve tomar o lugar daquilo que realmente
necessitamos. O Pentecostalismo tem sido, desde o início, um movimento de
restauração. Os pentecostais sustentam a mesma visão quando afirmam estar
vivendo o vigésimo- nono capítulo de Atos. Então, o que tanto precisamos
restaurar? Estaríamos desejando reconstituir os acontecimentos da rua Azusa?
Não é provável que alcancemos a restauração imitando os irmãos daquela época.14
Horton conclui seu
pensamento dizendo que não é preciso “imitar métodos”, mas sim, submetermos “a
nossa vontade uns aos outros”. Diz ainda que “não precisamos reconstituir os
acontecimentos do início do século” e que “Tampouco necessitamos copiar com
exatidão o que está relatado no livro de Atos”.15 A dinâmica do Espírito nos
círculos pentecostais é justamente corrigir a frieza do tradicionalismo (na
metodologia eclesiástica e na aplicação da Palavra), fazendo com que não se
transformem em empecilhos ao crescimento e à expansão do Reino. Assim, se os nossos
predecessores no início do século passado, execravam a reflexão teológica e,
com mais veemência, a intelectualidade, isso não significa que devamos
reproduzir tal postura para mantermos o ardor espiritual acesso. Tal pensamento
é anacrônico e um “pecado voluntário”.
Se Charles Parham
acreditava que fora o Diabo quem o convencera de cursar medicina, esse é um
pensamento exclusivamente pessoal que não encontra respaldo nem na Escritura, e
muito menos no bom senso.16 Seymour, herdeiro das mesmas tendências
antiintelectualistas, conseguiu êxito não apenas na disseminação do
pentecostalismo, mas também na propagação do antiintelectualismo, através do
jornal Apostolic Faith (Fé Apostólica). A grande pergunta que precisa ser
respondida é: Por que, apesar de nossa origem comum, as Assembleias de Deus no
Brasil (fundadas em 1911) e as Assembleias de Deus nos Estados Unidos (fundadas
em 1914), possuem uma perspectiva de produção teológica tão distinta umas das
outras, sendo as primeiras mais herdeiras e dependentes desse aspecto
antiintelectualista do pensamento de Parham e Seymour (que inclusive eram
norte-americanos) que as segundas? Outra questão, não menos importante, é: Por
que nossa matriz teológica, somente muitos anos depois, passou a depender da
América do Norte sem, contudo, copiar a postura norte-americana de “produzir”
teologia?
A diferença parece estar,
primeiramente, na interpretação do texto bíblico. Como ambos os grupos lidaram
com a ciência hermenêutica e com a exegese do texto bíblico? Enquanto os
norteamericanos muito cedo interessaram-se por esse aspecto, os pentecostais
brasileiros começaram a se despertar há poucos anos, sendo ainda bastante
tímido o desenvolvimento nessa área. Talvez seja por causa da chamada “Alta
Crítica”, “crítica superior”, “crítica bíblica” ou “crítica textual” que surgiu
o “temor” de se aplicar métodos científicos para o trabalho de interpretação
bíblica. Infelizmente, essa “precaução” ensejou a oportunidade de se
interpretar a Bíblia a partir da subjetividade, dos sentimentos e do “achismo”.
Incrivelmente, os pentecostais brasileiros abriram mão da postura dos crentes
bereanos, que foram elogiados por sua atitude com o exame da Bíblia Sagrada (At
17.11). Assim, a conquista reformista é agora desvalorizada por aqueles que
mais foram beneficiados por ela. Como já foi dito, evidentemente que essa
postura tem uma causa histórica. O grande problema é que, se naquele momento
histórico a motivação dos nossos pioneiros era preservar o povo do perigo do
esfriamento, atualmente, pessoas mal intencionadas se valem dessa abertura para
manipular e enganar a Igreja, agindo de forma astuciosa, exatamente da maneira
advertida por Paulo em Efésios 4.14. Diante dessa nova realidade, qual deve ser
o nosso papel neste contexto? Não é agir conforme os versículos 11 a 13 de
Efésios 4? O pentecostalismo precisa se libertar da chamada “interpretação
espiritualizada” da Bíblia. Quantas aberrações são justificadas por
interpretações descabidas, cujo único critério é o subjetivismo individual e manipulador?
Sobre esse assunto, Virkler cita o teólogo Alexander Carson que afirma
categoricamente: “Homem algum tem o direito de dizer, como alguns costumam
fazê-lo: ‘O Espírito me diz que tal ou tal é o significado de uma passagem’.
Como pode estar ele seguro de que é o Espírito Santo, e não um espírito
enganador, a não ser pela evidência de que a interpretação é o sentido legítimo
das palavras?”17 Todos os fundadores de seitas e as maiores heresias que
existem se esgueiram na zona cinzenta da “criatividade interpretativa” do texto
bíblico. Como disse Rick Nañez: Sem as Escrituras e o auxílio do Espírito,
estamos doutrinária e espiritualmente perdidos. Todavia, onde quer que o ensino
e a história tenham sido negligenciados, foi inevitável o surgimento de um grande
número de doutrinas contraditórias. O ato de se abster da assim chamada
aventura acadêmica leva, na melhor das hipóteses, à reinvenção da roda e, na
pior, a bases duvidosas que mudam com cada corrente de opinião e “liderança
especial”. Enquanto cumprem o “juramento hipocrático espiritual”, a maioria dos
ativistas do “a Bíblia e nada mais” entregaram-se à hipocrisia, ao insistirem
que esperam que os outros tomem as suas interpretações da verdade como a única
verdade.18
Nesse aspecto, fico com o
que escreveu R. L. Brant, pastor pentecostal por aproximadamente 60 anos e
presbítero executivo das Assembleias de Deus norte-americanas, no prefácio de
sua excelente obra Falar em línguas – O maior dom?: “Em sua dimensão mais
ampla, a verdade é tão vasta quanto o próprio Deus. Assim sendo, nenhum homem
pode esperar ser o detentor de toda a verdade. No máximo, podemos enxergar
através de um espelho escurecido”. E, no outro parágrafo arrematou: “Todavia, a
parte necessária e compreensível da verdade pode e deve ser conhecida”.19
Dentre os maiores perigos
da “livre interpretação”, três deles são dignos de destaque: 1) apropriar-se
indebitamente de promessas; 2) ficar com a interpretação que mais agrada; e 3)
induzir a Bíblia a dizer o que não está escrito. E é justamente para não
permitir que essas heresias se propaguem em nossos arraiais (em nome de
interpretações supostamente reveladas pelo Espírito Santo) que fomos colocados,
pelo Senhor, na Igreja para a protegermos (Ef 4.11-16).
Outra discussão que
merece destaque é justamente saber se o ato de adorar a Deus implica em
ignorância? É preciso ser inculto para adorar ao Senhor “em espírito e em
verdade”? Essa percepção parece não ser apenas equivocada como pervertida. À
mulher samaritana, na beira do poço de Jacó, o Senhor Jesus Cristo disse,
implicitamente, que era necessário conhecer a quem adoramos, pois adoração sem
conhecimento não tem sentido e valor. Ele disse que os samaritanos adoravam o
que não conheciam (Jo 4.22). Quando o apóstolo Paulo fala do culto racional (Rm
12.1), não há como fugir da verdade contida no texto: só pode adorar a Deus
aqueles que possuem uma consciência de quem Ele é! O culto não pode ser algo
mecânico e rotineiro, antes, para prestá-lo eficientemente, é imprescindível o
uso da inteligência, da lucidez e principalmente do sentimento de gratidão e
reconhecimento do “tamanho” da dívida que o sangue de Jesus pagou! Acima de
tudo existe ainda o mais importante propósito: o ser humano — assim como todas
as coisas — foi criado para a glória de Deus. Diferentemente de outras
religiões, o cristianismo — em sua acepção mais essencial, e não banalizada
institucionalmente com a multiplicidade de denominações — promove o ser humano
e não exige a sua anulação ou rebaixamento (como se animal fosse), a fim de
satisfazer algum capricho ascético ou extático de uma divindade narcisista.
Distintamente das outras, ele não requer intelectualidade acima da média, mas
também não aceita irracionalidade, pois para decidir-se por seguir a Jesus
Cristo, é preciso estar plenamente cônscio da realidade do próprio pecado e
reconhecer que só o sacrifício vicário e expiatório da cruz é que pode salvar.
Na maioria das vezes
percebe-se que a grande maioria das mensagens que ouvimos, dos estudos bíblicos
que participamos e dos livros que lemos, que o método utilizado pela pessoa que
as produzem, carrega um alto nível de alegorização do texto bíblico, unido ao
fator “revelação miraculosa” da mensagem. Tais posturas se imiscuem e são
fundamentadas em um elemento altamente efi caz na persuasão da audiência, porém
extremamente perigoso: o apelo emocional. O grande e terrível problema desse
condicionamento acrítico, é que existem, como disse Rick Nañez, “perigos
associados a doutrinas fragmentadas de declarações proféticas e por demais
dependentes de emoção”.20 O mesmo autor, citando Gordon Anderson (líder
pentecostal), diz que os perigos de se recorrer a esses recursos — doutrinas
fragmentadas por declarações proféticas e dependentes de emoção — são
justamente levar a igreja à “‘aceitação inquestionável de líderes, doutrinas e
práticas que deveriam ser rejeitados’”.21
III – REVISÃO TEOLÓGICA
Na já citada obra Falar
em línguas – O maior dom? de R. L. Brant, o seu primeiro capítulo é aberto
dizendo que no “vasto campo do movimento pentecostal, a necessidade primária é
o conhecimento”.22 Isso porque, segundo o mesmo autor o “conhecimento é
extremamente importante” e que nossa “fé depende inteiramente dele, exatamente
como um arranha-céu depende de seu alicerce”. Ele chega a citar que o apóstolo
“Paulo também entendia que o conhecimento tem uma importante relação com a fé,
e que sem ele, a fé seria impossível”.23 Antes de encerrar o seu pensamento, o
autor diz que é através da “Palavra escrita e elucidada pelo Espírito, [que] o
crente adquire o conhecimento”. Assim, a estrutura apresentada por Brant, fica
sendo a seguinte:
A fé, por sua vez,
determina a experiência espiritual; a experiência estabelece os limites para o
ministério. Portanto, a ordem é: 1) conhecimento, 2) fé, 3) experiência, e 4)
ministério. E esta ordem é fi xa. O conhecimento é o ponto de partida na escada
do ministério espiritual eficaz. Nunca a fé. A fé pressupõe o conhecimento, e
precede a experiência. Estes são os degraus do ministério espiritual.24
Uma vez que a absurda
ideia de que o texto de 2 Coríntios 3.6 fundamentava a “doutrina da incultura”,
sendo, portanto, um erro hermenêutico, é preciso reconhecer que a realidade não
é dada. Assim, se realmente existe essa disputa entre espiritualidade e
reflexão teológica, ou entre fervor e maturidade intelectual, é obrigatório
que, identificada a origem dessa dicotomia, venhamos a suprimi-la, pois uma vez
que tal postura não é natural, dada ou orgânica, mas, pelo contrário, foi
construída, é possível corrigi- la. É preciso repensá-la pela verdade colocada
pelo teólogo Alberto Roldán:
Toda prática religiosa,
[...], implica a adoção, consciente ou inconsciente, de tendências teológicas e
posturas ideológicas que é preciso aquilatar. Por isso insistimos em que a
teologia não é algo ‘caído do céu’, mas o produto de uma reflexão permanente a
partir de uma situação concreta, estabelecendo um ponto entre a informação
bíblica e nossa situação.25
É preciso entender que a
teologia é uma reflexão bíblica da comunidade cristã que está inserida dentro
de um determinado contexto. Como não há um apartheid imaginário que nos imuniza
contra as influências do tempo em que estamos vivendo, a leitura da Escrituras
fica condicionada a determinado período histórico, até porque, o intérprete
precisa estabelecer um ponto de contato com o que diz a Palavra e o tempo em
que ele está inserido. John Stott chega a afirmar que “nosso temperamento tem
mais influência na nossa teologia do que geralmente imaginamos ou admitimos”.
Isso soa demasiadamente estranho, pois, continua Stott, embora “a nossa
compreensão da verdade bíblica dependa da iluminação do Espírito Santo, ela é
inevitavelmente colorida pelo tipo de pessoa que somos, pela época 0610166
apostila que vivemos e pela cultura a que pertencemos”.26 Como disse certa vez
o já citado teólogo Alberto Roldán:
Como evangélicos temos um
postulado de fé básico e insubstituível: a Bíblia, como Palavra de Deus, é a
única autoridade em matéria de fé e doutrina, de modo que toda reflexão
teológica deve estar aberta à crítica por esta única Palavra de Deus. Uma
pergunta para pensarmos seria: O que devemos fazer quando um texto bíblico ameaça
o sistema teológico que adotamos? É óbvio que há duas alternativas: alterar o
texto ou alterar o sistema. Cada um de nós terá de fazer sua própria opção.27
Finney é tão grave em sua
crítica a esse respeito, que chega a afirmar que qualquer “tentativa não
inspirada de esboçar para a Igreja um padrão de opinião que possa ser
considerado uma exposição inquestionável da Palavra de Deus não só é ímpia em
si, como também uma admissão tácita do dogma fundamental do papado”. Segundo
ele, é “absurdo na teologia como seria em qualquer outro ramo da ciência, e tão
prejudicial e entorpecente quanto absurdo e ridículo”.28 Sua conclusão é tão
enfática, mas não sem explicação:
10. Ainda não consegui
estereotipar minhas opiniões teológicas e parei de pensar consegui-lo algum
dia. A idéia é absurda. Nada, senão um intelecto onisciente, pode continuar
mantendo uma identidade precisa de concepções e opiniões. Mentes finitas, a
menos que adormecidas ou entorpecidas por preconceitos, devem avançar no
conhecimento. A descoberta de uma nova verdade modifi cará concepções e
opiniões antigas, e talvez esse processo não tenha fi m em mentes finitas,
qualquer que seja o mundo. A verdadeira coerência cristã não consiste em
estereotipar nossas opiniões e concepções e em recusar-nos a fazer qualquer
progresso para não sermos acusados de mudança, mas que consiste em manter a
mente aberta para receber os raios da verdade por todos os lados e em mudar
nossas opiniões, linguagem e prática na freqüência e na velocidade com que
conseguimos obter informações complementares. Chamo-o de coerência cristã
porque só essa trilha está de acordo com uma confissão cristã. Uma confissão
cristã implica investigação contínua e mudança de opinião e prática em
correspondência ao conhecimento crescente. Nenhum cristão, portanto, e nenhum
teólogo deve temer uma mudança em suas concepções, linguagem ou práticas em
conformidade com uma luz crescente. A predominância desse temor manteria o
mundo no mínimo numa imobilidade perpétua, e todos os objetos da ciência e, por
conseguinte, todos os aperfeiçoamentos tornar-se-iam impossíveis.29
IV – APROFUNDAMENTO NA
PALAVRA E PODER DO ESPÍRITO SANTO
O já citado Gary B.
McGee, dissertando sobre o Panorama Histórico (do Movimento Pentecostal e,
especificamente, da Assembleia de Deus norte-americana), ao falar sobre a
preservação da doutrina até 1950 (e depois após 1950), diz que é justamente o
fato de encaminhar “os cristãos a respeito de uma vida madura no Espírito,
[que] ajuda [a] explicar a grande prioridade atribuída às publicações
pentecostais”.30 Em outras palavras, foi justamente visando a maturidade
espiritual que a igreja norteamericana investiu nesse aspecto. Falando acerca
do envolvimento dos pentecostais com o estudo e a pesquisa aprofundados que
cada vez mais a liderança norte-americana fazia, McGee revela com destaque um
nome que muito tem a falar a todos nós:
Embora muitos tivessem
tido, desde o início, preocupações com a intelectualização da fé, a nova
estirpe de instrutores foi um exemplo de equilíbrio entre a espiritualidade
pentecostal e os estudos acadêmicos. Um desses professores, Stanley M. Horton,
havia se formado em línguas bíblicas e Antigo Testamento, no Seminário
Teológico de Gordon-Conwell, na Faculdade de Divindades de Harvad, e no Seminário
Teológico Batista Central. No decorrer dos anos, Horton começou a demonstrar
notável influência sobre a denominação mediante os seus ensinos, livros (O Que
a Bíblia Diz Sobre o Espírito Santo [publicado pela CPAD]), artigos em revistas
e jornais, e contribuições ao currículo da Escola Dominical para adultos.31
Em nosso país essa lista
pode ser ampliada de maneira extensa, sem nenhuma perda de fervor espiritual
por parte daqueles que se dedicam ao estudo mais profundo das Escrituras
Sagradas, incluindo-se as línguas originais e outros aspectos técnicos.
Acredito até que seja o momento de se definir o que é ser fervoroso e
espiritual. O que é aprofundar-se na Palavra senão obedecer ao que o próprio
Deus disse através de Oseias 6.3 e do apóstolo Pedro em sua segunda epístola,
capítulo 3, versículo 18? E o que Jesus Cristo disse também em Mateus 22.29?
Fonte: Texto escrito para
o Encontro de Reflexão Teológica do Movimento Pentecostal - Assembleia de Deus
em Campinas - SP
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