HISTORIA DA IGREJA MEDIEVAL
VÓS SOIS CORPO DE CRISTO: REFLEXÕES HISTÓRICO-TEOLÓGICAS SOBRE A IGREJA CRISTÃ
Introdução
Ao se estudar a história do cristianismo, é importante refletir em primeiro lugar sobre o que é a Igreja Cristã, qual o seu significado, sua natureza e seus limites. O Novo Testamento grego usa a palavra ekklesía no singular e no plural, ou seja, tanto para referir-se a uma comunidade cristã específica – uma igreja local (Mt 18.17; At 8.1; 14.23; Rm 16.5; 1 Co 1.2; 4.17; Fp 4.15; Cl 4.15,16; Ap 2.1), quanto a um conjunto dessas comunidades, geralmente localizadas em uma determinada região (At 15.41; Rm 16.4,16; 1 Co 7.17; 2 Co 8.1; Gl 1.22; 1 Ts 2.14; 2 Ts 1.4; Ap 1.4). Mais intrigante, e certamente mais complexo, é o uso do termo no singular, porém com um significado coletivo, isto é, com referência a uma realidade mais ampla e mais profunda, como é o caso da passagem clássica de Mateus 16.18 (“... sobre esta pedra edificarei a minha igreja”). Esse uso teologicamente mais denso do termo também pode ser visto em textos como Atos 20.28 e em várias passagens das epístolas aos Efésios e aos Colossenses (Ef 1.22,23; 3.10,21; 5.23-32; Cl 1.18,24).
Mas o que é afinal “a igreja” nesse sentido mais abrangente e mais profundo? O Novo Testamento parece dar uma dupla resposta a essa pergunta. Por um lado, ela é uma realidade espiritual e mística, o corpo de Cristo, e como tal é invisível aos olhos humanos. Trata-se do conjunto dos verdadeiros crentes, passados, presentes e futuros, daqueles que pertencem a Cristo e o reconhecem explicitamente como Salvador e Senhor, onde quer que se encontrem (Ef 1.23; 2.16; 4.4,12,16; Cl 1.18,24; 2.17,19; 3.15). Por outro lado, em um sentido mais concreto e palpável, esse corpo é o conjunto visível daqueles que professam a fé cristã e se reúnem em comunidades (Rm 12.4,5; 1 Co 10.17; 12.12-27; Ef 3.6; 5.30). Nesta segunda acepção, o Novo Testamento utiliza várias outras figuras para designar a igreja: povo de Deus, família, edifício, rebanho, lavoura de Deus, etc. Em nenhum desses dois aspectos neotestamentários o termo “igreja” se refere a uma estrutura, a uma organização, mas é sempre uma realidade invisível, o corpo místico, ou visível, o conjunto dos fiéis.
1. A igreja institucional
Em contraste com o período apostólico, no final do primeiro século e início do segundo começou a surgir a idéia de que a igreja é uma instituição e de que essa instituição consiste essencialmente no colegiado de seus líderes. Esse foi um período ao mesmo tempo fértil e conflitivo para o cristianismo, uma época em que os cristãos precisaram definir com mais clareza a sua identidade diante de múltiplos desafios externos e internos com que se defrontavam. Entre os desafios externos, estavam as perseguições movidas pela sociedade e pelo estado romano, bem como as críticas simplistas ou sofisticadas feitas pelo mundo pagão. O principal desafio interno consistiu no surgimento de interpretações distintas e por vezes divergentes da fé cristã. Isso significa que o movimento cristão não era uniforme ou homogêneo, mas caracterizava-se por uma grande diversidade de convicções e práticas.
Diante da existência de grupos dissidentes como docetistas, gnósticos, marcionitas, montanistas e outros, logo surgiu a questão: Onde está a igreja verdadeira e como identificá-la? A resposta foi o que se convencionou chamar de “igreja católica”, expressão essa que surge pela primeira vez na literatura conhecida numa carta do bispo Inácio de Antioquia datada aproximadamente do ano 110. A “igreja católica” passou a ser uma designação da igreja majoritária, do cristianismo normativo e ortodoxo, fiel aos ensinamentos de Cristo e dos apóstolos, em contraste com os movimentos alternativos, considerados falsos ou heréticos. Essa “igreja católica” do segundo século caracterizava-se por três elementos essenciais de unidade e estabilidade: a aceitação de um conjunto de livros tidos como divinamente inspirados (as Escrituras Hebraicas e o cânon do Novo Testamento), a declaração formal dos pontos centrais da fé cristã (o credo, geralmente em forma trinitária) e especialmente a concentração da autoridade nas mãos de um único líder em cada igreja local (o bispo monárquico). Associado a isso, surgiu o conceito de sucessão apostólica.
O bispo, considerado o sucessor direto dos apóstolos, passou a ser visto como o guardião tanto da unidade quanto da ortodoxia da igreja. A igreja estava presente onde o bispo, o representante de Cristo, estivesse presente. E o conjunto de todos os bispos constituía a igreja no sentido mais amplo. Quem estivesse em comunhão com os bispos estava na igreja; quem não estivesse em comunhão com os bispos, estava fora da igreja. A partir daí, a identificação da igreja com a hierarquia eclesiástica passou a ser cada vez mais acentuada, como se pode observar nos escritos de Cipriano de Cartago, um destacado líder cristão que viveu no norte da África no século terceiro.
2. Igrejas dissidentes
Uma situação particularmente interessante surgiu no quarto século, no contexto da última grande perseguição movida contra os cristãos pelo Império Romano ocidental. A partir do ano 303, o imperador Diocleciano e depois dele o seu sucessor Galério tentaram eliminar o cristianismo. Uma das medidas adotadas para tal foi a destruição de cópias das Escrituras. Os ministros cristãos eram pressionados a entregar os manuscritos bíblicos, e aqueles que o fizeram ficaram conhecidos como “traditores” (literalmente “entregadores” e, por extensão, “traidores”). Acontece que, numa eleição episcopal realizada no norte da África, um dos bispos consagrantes do bispo eleito foi acusado de ser um “traditor”. Isso deu início ao chamado cisma donatista (de Donato, um dos líderes do cisma), um movimento perfeccionista que resultou em uma Igreja separada da Igreja Católica, e paralela a esta. Na região da Numídia havia, nas mesmas cidades, igrejas católicas e donatistas lado a lado. Foi somente no início do quinto século que o cisma donatista foi eliminado mediante intervenção estatal, medida essa apoiada pelo grande bispo e teólogo Agostinho. Em suma, considerou-se que a Igreja Donatista não era uma Igreja verdadeira, não merecia o nome de Igreja.
A partir de então, a Igreja Católica, agora poderosa e aliada do Estado, passou a combater sistematicamente qualquer dissidência religiosa. A Igreja tornou-se uma organização cada vez mais coesa, monolítica, centralizada no clero e especialmente na figura do bispo de Roma, elevado à condição de líder supremo, o papa. Surgiu gradativamente, ao longo da Idade Média, o conceito de cristandade, a visão de uma sociedade unificada tanto política quanto religiosamente, tendo no seu topo as figuras dos reis e dos bispos, do imperador e do papa. Aqueles que ousassem divergir eram duramente reprimidos, como aconteceu com os cátaros, uma seita sincrética do sul da França, que foi eliminada em grande parte através de uma série de cruzadas no início do século XIII. Foi nesse período que se formalizou a punição dos hereges com a criação da Inquisição papal ou Santo Ofício.
Se os cátaros dificilmente poderiam ser considerados seguidores do cristianismo histórico, em face das suas convicções gnósticas e maniqueístas, tal não se poderia dizer de outro movimento francês do século XII, os valdenses (do nome do líder inicial, Pedro Valdés), inicialmente conhecidos como os “homens pobres de Lião”. Caracterizados pelo seu apego às Escrituras e por um estilo de vida simples, os valdenses foram igualmente reprimidos, somente sobrevivendo por terem se refugiado em alguns vales remotos dos Alpes no norte da Itália. O mesmo se pode dizer do movimento iniciado pelo sacerdote inglês João Wyclif e seus seguidores, os lolardos, no final do século XIV. A crítica da Igreja Medieval com base nas Escrituras, empreendida por Wyclif, encontrou eco em um sacerdote checo, João Hus, que acabou morto na fogueira pelo Concílio de Constança, em 1415. Seus seguidores, os hussitas ou irmãos boêmios, mais tarde conhecidos como irmãos morávios, constituíram um movimento extremamente equilibrado, bíblico e cristocêntrico, embora estivessem excluídos da Igreja Oficial. Com o advento da Reforma Protestante, tanto os valdenses quanto os irmãos morávios abraçaram o protestantismo, sendo, portanto, igrejas evangélicas anteriores à Reforma. Todos esses grupos tiveram-lhes negado o status de igrejas, embora certamente o merecessem.
3. A perspectiva protestante
A Reforma Protestante foi, entre outras coisas, o questionamento da noção de que uma determinada tradição cristã tem o direito exclusivo ao título de igreja. Antes, os reformadores afirmaram que, onde quer que o povo de Deus se reúna para ouvir a pregação fiel das Escrituras e receber a ministração dos sacramentos bíblicos aí está presente a igreja. Com essa nova mentalidade, o protestantismo abriu as portas para a diversidade dentro do cristianismo. Como a igreja não se reduz a instituições ou estruturas eclesiásticas, os protestantes aceitaram com relativa facilidade a existência de diferentes ramos no seu movimento: inicialmente luteranos, calvinistas, anabatistas e anglicanos; posteriormente, batistas, congregacionais, metodistas e muitos outros. Além disso, na cosmovisão protestante não existe a distinção entre clero e leigos – todos são “leigos” (do grego laós, ou seja, “povo”, o povo de Deus) e sacerdotes ao mesmo tempo (ver 1Pedro 2.9-10). Antes de ser a “mãe dos fiéis”, a igreja é a “comunhão dos santos”.
Ainda que as divisões protestantes tenham seus aspectos tristes e condenáveis, elas implicam no reconhecimento tácito de que nenhum grupo pode arrogar para si o direito de ser a manifestação plena e exclusiva da igreja de Cristo. Nenhuma igreja evangélica, por mais bíblica que se considere, pode, em sã consciência, considerar-se “a igreja”, à exclusão de todas as demais. Existem muitas “igrejas”, no sentido de agremiações cristãs, mas uma só “igreja”, no sentido mais pleno da palavra, o corpo espiritual e invisível de Cristo ou o conjunto de todos os verdadeiros seguidores de Cristo, que inclui pessoas de todas as igrejas, sejam elas protestantes, católicas ou ortodoxas, e até mesmo indivíduos que, por algumas razões excepcionais, não estão filiados a nenhuma denominação cristã. Somente Cristo conhece os que são seus.
4. Acontecimentos recentes
Diante de tudo isto, é estranho que alguns dirigentes cristãos continuem insistindo na tese de que a sua agremiação religiosa é “a igreja” por excelência, ou, pior ainda, que uma determinada estrutura eclesiástica pode ser assim considerada. Até mesmo nos meios protestantes, isso tem ocorrido, quando certos líderes eclesiásticos referindo-se a grupos que adotam uma postura de discordância ou oposição a uma cúpula dirigente, dizem que os mesmos estão rebelados contra a igreja e contra Deus, ficando sujeitos aos castigos divinos. Essa postura revela um lamentável equívoco quanto ao conceito bíblico e evangélico do que é de fato a igreja em sua expressão mais elevada – não é a denominação, a estrutura, a instituição humana, e muito menos a sua liderança. Essas realidades são importantes e a Escritura ensina a obediência aos líderes da igreja, na medida em que se mantenham fiéis à própria Escritura. Contudo, não se deve perder de vista o que é mais essencial: a igreja como o corpo de Cristo ou o povo de Deus, que se reúne para adorá-lo e se dispersa para servi-lo e dar testemunho dele diante do mundo.
No ano 2000, protestantes do mundo inteiro ficaram surpresos com uma declaração oficial emitida pelo Vaticano afirmando ser a Igreja Católica Romana a única igreja verdadeira. O cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, agora o papa Bento XVI, condenou a aplicação da expressão “igrejas irmãs” às igrejas protestantes (elas seriam somente “comunidades eclesiais”) e o documento DominusIesus declarou que as igrejas que não possuem um “episcopado válido e a substância integral e genuína do mistério eucarístico não são igrejas no sentido apropriado”. Líderes eclesiásticos de todos os matizes teológicos fizeram ouvir o seu protesto, mostrando que alguns temas teológicos controvertidos do século XVI continuam relevantes no início do terceiro milênio. Para os herdeiros da Reforma a questão é clara: a igreja invisível é uma realidade que somente Deus conhece; já a igreja visível é, acima de tudo, o povo de Deus, o conjunto dos fiéis, onde quer que se encontrem. Nas palavras do apóstolo dos gentios aos coríntios e a nós: “Vós sois corpo de Cristo e, individualmente, membros desse corpo” (1Co 12.27).
A DIVINA TRÍADE: IRINEU DE LIÃO E A DOUTRINA DE DEUS.
PORTAL MAKENZIE / Alderi S. de Matos
Introdução
Irineu, o bispo de Lião, ocupa um lugar de destaque tanto na história da Igreja em geral quanto na história do pensamento cristão em particular. A sua vida e obra são especialmente significativas porque ele viveu em um período importante da Igreja Primitiva sobre o qual temos relativamente poucas informações. O segundo século foi uma época em que os apóstolos, os sucessores imediatos de Jesus, já não viviam, e a Igreja Cristã ainda não havia alcançado a força e estabilidade que iria obter nos séculos seguintes. Foi uma época de incertezas para o movimento cristão ainda recente, constantemente ameaçado por perseguições e heresias; uma época em que a Igreja, pressionada pelos desafios lançados tanto por seus críticos pagãos como por seus dissidentes cristãos e pseudocristãos, sentiu-se mais e mais compelida a explicitar a sua fé em termos claros e convincentes.
Irineu de Lião tem sido chamado merecidamente “O Pai da Ortodoxia Cristã”, “O Pai da Dogmática Católica” e “O Primeiro Grande Teólogo sistemático da Igreja”. Ele também foi caracterizado como o mais importante teólogo do segundo século, o teólogo que sintetizou o pensamento daquele século e dominou a ortodoxia cristã antes de Orígenes. Curiosamente, Irineu não foi primariamente um teólogo no modelo escolástico, mas um pastor e mestre da igreja, um homem preocupado com a integridade da mensagem cristã e com a unidade, paz e prosperidade do corpo de Cristo. Os seus escritos são uma resposta direta, motivada por considerações pastorais e práticas, ao sério desafio e ameaça representado pelo gnosticismo. Portanto, ele se dirige a outros líderes cristãos para ajudá-los a protegerem os seus rebanhos de ensinamentos que pervertiam seriamente o evangelho.
A sua luta decisiva e eficaz contra o gnosticismo coloca Irineu entre os chamados Pais Anti-Gnósticos. Como tal, Irineu se insere numa longa tradição de defesa corajosa da fé cristã, contra as heresias, que foi iniciada pelos autores do Novo Testamento e teve prosseguimento com os Pais Apostólicos e os Apologistas. Nos seus esforços intelectuais, ele foi imediatamente seguido pelos grandes pensadores do terceiro século, mui especialmente Tertuliano (c.155-222) e Orígenes (c.185-254).
Ainda que não tenha sido fundamentalmente um teólogo, muito menos um teólogo sistemático, Irineu certamente produziu uma teologia profunda, sólida e influente. No entanto, ao contrário dos Apologistas, particularmente Justino Mártir (c.100-165), ele nutria grandes suspeitas em relação às especulações filosóficas, e isto por duas razões—elas não levavam a conclusões certas e confiáveis e eram, a seu ver, uma das fontes do gnosticismo. O traço peculiar dos escritos de Irineu é a sua natureza explicitamente bíblica. Ele é acima de tudo um teólogo bíblico, no sentido de que para ele a tradição bíblica era a única fonte da fé e o verdadeiro fundamento da teologia. Tendo rejeitado a noção de que o conteúdo da revelação era simplesmente uma nova e melhor filosofia, Irineu, mais do que qualquer dos seus predecessores, esforçou-se para fornecer uma síntese de toda a Escritura, cobrindo todas as principais áreas da teologia cristã.
Ao mesmo tempo, é evidente que Irineu recebeu muitas influências e fez uso de diferentes fontes, tanto bíblicas como extrabíblicas, que faziam parte do seu contexto intelectual secular e religioso. Ele não reivindica ser um autor original, mas vê a si mesmo como um expositor da doutrina que havia recebido da Igreja. Embora os seus escritos sejam circunstanciais, condicionados pelas necessidades imediatas da Igreja, eles nos dão uma boa perspectiva de como era o pensamento e o ensino bíblico e doutrinário ao final do segundo século.
Devido à sua contribuição, “não é de surpreender”, diz Hardy, “que os teólogos modernos convidem Irineu a dar-lhes apoio em nossas atuais discussões”. González vai além, afirmando que “a sua teologia, fundamentada na Bíblia e na doutrina da Igreja antes que em suas opiniões pessoais, tem sido continuamente uma fonte de renovação teológica”. Provavelmente, a principal área em que Irineu deu uma contribuição permanente à Igreja de todos os tempos foi a teologia propriamente dita, ou seja, a doutrina de Deus. Era precisamente nesta área que o ensino gnóstico se mostrava mais prejudicial à doutrina cristã, através de sua incisiva negação da unidade de Deus e a sua conseqüente tendência divisionista na cristologia, na antropologia e na eclesiologia.
O propósito deste estudo é rever e avaliar esta contribuição de Irineu ao pensamento cristão a partir de uma perspectiva histórica e teológica. As próximas seções irão tratar resumidamente da vida e obra desse pensador, de alguns aspectos do sistema gnóstico por ele combatido e dos argumentos utilizados nesta confrontação, e de uma exposição e análise da sua doutrina de Deus, que antecipou vários temas das célebres discussões trinitárias dos séculos seguintes.
1. A vida de Irineu
Muito pouco se conhece sobre a vida de Irineu. Ele aparece pela primeira vez nos documentos antigos como o portador de uma carta dos confessores de Lião para a Igreja de Roma (bispo Eleutério, c.174-189), na época da perseguição do ano 177. Esta carta pedia tolerância para os montanistas da Ásia Menor. Em uma carta pessoal preservada por Eusébio de Cesaréia (Hist. eccl. 5,20,4-8), Irineu conta que tinha vívidas lembranças de Policarpo, o bispo de Esmirna, que fora discípulo do apóstolo João. Isto era altamente significativo para Irineu, uma vez que Policarpo o colocava em contato com a era apostólica. Irineu nasceu entre os anos 120 e 140 na Ásia Menor, provavelmente em Esmirna, onde ainda menino conheceu Policarpo, que foi martirizado aos 86 anos de idade no ano 155.
Possivelmente por volta do ano 170, motivos familiares, pessoais ou missionários o levaram a Roma e depois para Lião (Lugdunum), no sul da Gália, atual França, onde ele se tornou um presbítero. Hardy comenta que a Lião do segundo século era uma pequena Roma. Uma cidade comercial às margens do Ródano e o centro do sistema romano de estradas da Gália, Lião era a sede de uma guarnição romana e a capital das três províncias gaulesas, sendo também o centro do culto imperial naquelas províncias. Como Roma, Lião tinha uma grande população de língua grega entre a qual o cristianismo estava firmemente estabelecido. A igreja de Lião tinha outros imigrantes de língua grega procedentes da Ásia Menor como Irineu.
Após a sua missão em Roma no ano 177, Irineu retornou para Lião e descobriu que o bispo Potino havia sido martirizado, sendo então escolhido para ser o seu sucessor. Como bispo de Lião, Irineu liderou a igreja daquela cidade, defendeu o seu rebanho contra as heresias e lutou pela paz e unidade da Igreja Cristã como um todo. Esta última preocupação o levou a intervir na controvérsia pascal (c.190), quando Vítor, o bispo de Roma (189-198), ameaçou excomungar as igrejas da Ásia Menor por causa de um desentendimento referente à data da celebração da Páscoa. Por esta razão, Eusébio declara que Irineu portou-se à altura do seu nome, porque provou ser um verdadeiro pacificador ou eurenopoios (Hist. eccl. 5,24,18). Após este incidente, Irineu desapareceu completamente dos registros históricos e até mesmo o ano da sua morte é desconhecido.
2. Escritos
Irineu escreveu uma longa série de obras, das quais somente duas sobrevivem: seu grande tratado A Detecção e Refutação da Falsamente Chamada Gnose (c. 185), geralmente conhecido como Contra as Heresias (Adversus Haereses), e uma obra de menor tamanho, Epideixis ou Demonstração da Pregação Apostólica, um tratado apologético descoberto em uma versão armênia em 1904 e publicado pela primeira vez em 1907. Dos outros escritos de Irineu—vários tratados e cartas—temos apenas uns poucos fragmentos ou somente os títulos, os quais foram preservados por Eusébio de Cesaréia.
A gigantesca Contras as Heresias consiste de cinco livros que no seu conjunto são maiores do que todo o corpo de literatura cristã existente naquela época. O original grego perdeu-se quase inteiramente, mas existe uma tradução latina muito literal que foi publicada pela primeira vez por Erasmo de Roterdã em 1526, e também uma versão armênia dos dois últimos livros publicada em 1913.
Como indica o título original, a obra é composta de duas partes. A primeira parte (Livro I) trata da detecção ou descrição das doutrinas dos gnósticos, especialmente dos discípulos de Ptolomeu, que era discípulo de Valentino. O autor conclui triunfantemente: “Meramente descrever tais doutrinas é o mesmo que refutá-las” (Adv. haer. 1,31,3-4). A segunda parte, a “refutação”, compreende os quatro livros restantes. No Livro II, Irineu refuta a gnose dos valentinianos e dos marcionitas com base na razão. Ele ataca as doutrinas do pleroma e dos eons com uma lógica implacável, mas não procura elaborar uma alternativa especulativa. Na realidade, o Livro II desenvolve o que havia ficado incompleto no primeiro livro.
Os últimos três livros são devotados à refutação do gnosticismo com base nas Escrituras. Aqui Irineu trata de muito temas mais amplos e elabora os princípios basilares da teologia cristã. O Livro III coloca o fundamento da doutrina cristã nas Escrituras e na tradição e elabora com detalhes os seus pontos essenciais—a unidade de Deus e a redenção por meio de Cristo. O Livro IV defende contra Márcion a unidade das duas alianças e o Livro V continua a discussão acerca da redenção e daí passa para as últimas coisas e a esperança do mundo por vir. Neste livro, Irineu discorre longamente sobre a ressurreição do corpo, que era negada por todos os gnósticos.
Contra as Heresias é a primeira grande obra cristã no segundo nível da teologia, a primeira tentativa abrangente de declarar o que é realmente o cristianismo. Embora muito menor, a Epideixis ou Demonstração também é significativa, uma vez que parece representar o ensino de Irineu aos catecúmenos. Ela segue a ordem da fórmula batismal, aduzindo provas escriturísticas para a crença no Pai, Filho e Espírito Santo.
3. Os gnósticos
Bengt Hägglund observa com propriedade que “foi o idealismo gnóstico, com a sua negação da criação, que compeliu os pais da Igreja a abordarem com tantos detalhes as doutrinas de Deus e da criação, juntamente com o problema do homem, a encarnação e a ressurreição do corpo”. É bem sabido que aquilo que chamado de gnosticismo era um fenômeno muito complexo que assumiu uma grande variedade de configurações. De um lado do espectro havia manifestações de uma gnose cristã, das quais a mais destacada foi o marcionismo. Por outro lado, os gnósticos do tipo valentiniano dificilmente poderiam ser considerados como cristãos. Eles eram perigosamente enganosos uma vez que utilizavam as mesmas Escrituras e a mesma linguagem que os cristãos, mas com um sentido radicalmente diferente. Irineu chama atenção para este fato através da interessante analogia da imagem de um rei e de sua transformação na imagem de um animal (Adv. haer. 1,8,1).
Todos os sistemas gnósticos tinham em comum a opinião de que o cristianismo ortodoxo, com o seu “credo” claro e objetivo, era demasiado simples. Eles professavam no mínimo ter uma resposta mais complexa para o enigma do universo. Filosoficamente, as diferentes correntes do gnosticismo também tinham em comum a negação da unidade de Deus conforme apresentada nas Escrituras e ensinada pela Igreja Primitiva. Na sua forma mais simples, eles negavam a identificação do Deus do Velho Testamento, Iavé, com o Deus de Jesus Cristo.
Norris pondera que o contexto da “gnose” ou “verdade mais profunda” do gnosticismo “tinha a ver com a questão religiosa fundamental da origem, natureza e destino da alma”. Esta preocupação levava a um entendimento do Ser Divino e da sua relação com o mundo que distorcia por completo o ensino cristão tradicional acerca de Deus. Deste erro fundamental, decorriam todas as outras idéias gnósticas errôneas nas diferentes áreas da teologia cristã.
Na concepção de Irineu, a gnose era pura e simplesmente uma contradição do cristianismo, uma negação das suas doutrinas capitais. Como sabemos, Irineu não estava interessado no gnosticismo como um fenômeno geral, mas em um tipo particular de ensino que ele havia encontrado em Lião — a doutrina de Ptolomeu, “um rebento da doutrina de Valentino” (Adv. haer. 1, prefácio, 2). Como tal, a gnose ptolomaica era “um sistema de complexidade fantasmagórica, cujo propósito era expor a verdade acerca da identidade do gnóstico em sua natureza mais íntima”.
Conforme a descrição de Irineu, o traço essencial da gnose ptolomaica era um dualismo consistente. Os gnósticos não reconheciam um, e sim dois mundos. Havia o Pleroma ou Plenitude, uma sociedade de seres divinos ou Eons, em cujo ápice ficava a realidade última desconhecida e incognoscível, o Abismo. Fora e abaixo do Pleroma estava o corrupto mundo material, o produto indesejado de uma desordem temporária na vida do Pleroma. O mundo foi produzido através de um processo complexo que gerou os seus três elementos constitutivos: matéria corpórea, alma e espírito. Os espíritos dos gnósticos estavam destinados a retornarem finalmente para o seu lar no Pleroma.
O artífice do mundo visível é uma entidade angélica, o Demiurgo, uma simples alma que ignora qualquer vida superior à sua própria. Este é o Deus dos judeus e o Jesus humano e terreno é o seu Messias. No entanto, existe uma dimensão oculta da verdade nos ensinos de Jesus que revela o próprio Pleroma. Isto acontece porque um eon divino, o Salvador, veio sobre Jesus no seu batismo e permaneceu com ele até o momento do seu sofrimento e morte. Todo aquele que lê as palavras de Cristo em sintonia com o seu significado interior, e não com o seu sentido literal, encontra nas mesmas não as palavras do Messias judeu, mas o ensino do próprio Salvador, que traz o conhecimento da vida divina do Pleroma.
Obviamente, a conseqüência deste sistema era o abandono completo do entendimento cristão tradicional acerca do Ser Divino e do seu relacionamento com o mundo. Conforme Norris observa: “Na sua ansiedade de segregar a matéria do espírito, o mal do bem, os gnósticos dissolveram ao mesmo tempo a unidade do mundo e a unidade de Deus”. Por sua vez, este dualismo gnóstico destruía a integridade da teologia da história que estava no âmago da pregação cristã. A oposição entre o Velho e o Novo Testamento, entre Iavé e o Salvador manifestado em Jesus, levava a uma dissolução da unidade da história da salvação, a história da relação de Deus com a humanidade apresentada nos escritos sagrados da Igreja.
4. O argumento de Irineu
A argumentação de Irineu contra a heresia gnóstica foi tríplice: filosófica, histórica e exegética. Primeiramente, ele chamou a atenção para o absurdo lógico do sistema gnóstico, especialmente na sua idéia de Deus. Particularmente, no segundo livro deAdversus Haereses, ele procura expor “as inconsistências de uma concepção que proclama a infinidade e a supremacia do Deus absoluto e ao mesmo tempo nega a sua responsabilidade pelo mundo material. A forma racional e abstrata deste argumento parece contradizer a afirmação anterior de que Irineu nutria suspeitas com relação às especulações filosóficas. Sabemos que em vários pontos de suas obras a sua hostilidade para com a filosofia é bastante explícita (Adv. haer. 2,26,1). Todavia, o fato é que Irineu não poderia deixar de fazer especulações e de utilizar idéias religiosas e filosóficas que estavam profundamente incrustadas no seu contexto cultural (judaísmo helenístico, platonismo, etc.).
Em segundo lugar, Irineu refutou a alegação dos gnósticos de que eles ensinavam a verdadeira doutrina de Cristo e dos apóstolos. Nesta tarefa, Irineu teve de estabelecer as credenciais históricas da sua própria posição, ou seja, a harmonia existente entre aquela doutrina e o seu cristianismo anti-gnóstico. Ele apelou para os escritos sagrados que constituíam o fundamento dos ensinos da Igreja (o Velho Testamento na versão da Septuaginta e os livros que mais tarde seriam conhecidos como o Novo Testamento) e insistiu em que estas fontes escritas eram o único padrão final do autêntico ensinamento cristão. Além disso, ele apelou ao princípio da tradição: o critério para o entendimento das Escrituras é encontrado na doutrina abertamente proclamada (“a regra da verdade”) por aquelas igrejas cujos líderes sucederam numa ordem publicamente reconhecida o ofício docente dos apóstolos. A “verdade” que, de acordo com Irineu, era a “regra” (kanon), consistia da ordem da salvação revelada na Bíblia, proclamada pela Igreja e sintetizada na confissão batismal.
O terceiro nível do argumento de Irineu foi exegético. Ele tomou os ensinos dos profetas, de Cristo e dos apóstolos e mostrou que eles se opunham frontalmente à doutrina dos adversários gnósticos. No decurso da sua análise exegética Irineu desenvolveu o que considerava a alternativa ortodoxa ao gnosticismo. Este empreendimento o levou a utilizar idéias exegéticas e teológicas que havia herdado de escritores cristãos anteriores, especialmente dos apologistas. Desse modo, a elaboração feita por Irineu de uma alternativa ao gnosticismo o levou a dialogar com a cosmologia teológica grega, cujo início consciente pode ser visto nas apologias de Justino. Além disso, à medida que procurava mostrar a continuidade entre os eventos do Velho Testamento e os do Novo Testamento, Irineu utilizou e desenvolveu a chamada exegese tipológica (Adv. haer. 4,20,7 - 25,3).
5. A doutrina de Deus
Por volta de meados do segundo século começou a surgir nos círculos cristãos uma crescente elaboração de formulações confessionais, catequéticas e batismais, bem como o esforço de falar sobre as implicações mais amplas das mesmas, em nível intelectual. Estas elaborações marcam a transição de uma teologia primária para uma teologia secundária ou de segundo nível, em resposta à necessidade de explicar o que acontecia quando alguém era batizado, ou seja, qual o significado do novo relacionamento estabelecido com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Mais especificamente, a necessidade de interpretar as fórmulas catequéticas, confessionais e batismais em face dos escritos heréticos foi o contexto no qual começou a surgir a busca intelectual da doutrina da trindade. Em Irineu, encontramos a primeira elaboração extensa das fórmulas batismais triádicas, juntamente com as suas implicações, como uma resposta direta ao desafio lançado pelo gnosticismo à concepção cristã de Deus.
Irineu inicia com a regra da verdade, a “tradição” ou ensino transmitido pelos apóstolos e fielmente preservado pela igreja. A partir daí ele desenvolve o seu entendimento acerca da unidade de Deus e da realidade da tríade divina: Pai, Filho e Espírito Santo. Não havia um credo em Lião, mas uma linguagem triádica sobre o que significava ser um cristão. Evidentemente, ainda não havia uma doutrina da trindade. Apesar das suas afirmações ao contrário, Irineu demonstrou ter uma mente altamente criativa ao deduzir as implicações das fórmulas tradicionais para muitas áreas do pensamento cristão, particularmente para a idéia de Deus.
5.1 A Regra da Verdade
Como foi visto acima, para Irineu a “regra da verdade” era o sistema de fé derivado dos apóstolos e dos seus discípulos e compartilhado pela Igreja universal. Com isto, ele não estava se referindo a um único credo universalmente aceito ou a qualquer tipo de fórmula como tal, mas ao conteúdo doutrinário da fé cristã transmitida na Igreja “católica”. Em várias passagens, Irineu faz alusões a esta regra da verdade e até mesmo reproduz sínteses da mesma, quase invariavelmente em termos triádicos e em conexão com o batismo.
Existem vários exemplos na Epideixis, como este encontrado no capítulo 3: “Antes de tudo, precisamos ter em mente que recebemos o batismo para a remissão dos pecados em nome de Deus o Pai, e em nome de Jesus Cristo o Filho de Deus, que se encarnou, morreu e ressuscitou, e no Espírito Santo de Deus”. Existem outras referências nos capítulos 7 e 100. A partir desta linguagem, Kelly conclui que Irineu conhecia uma série de perguntas batismais que seriam mais ou menos assim: “Você crê em Deus Pai? Você crê em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que se encarnou, morreu e ressurgiu? Você crê no Espírito Santo de Deus?”. A Epideixis tem, no seu capítulo 6, uma exposição detalhada dos três pontos, novamente em um contexto relacionado com o batismo, o que dá uma boa idéia da instrução catequética pré-batismal fornecida naquela época.
Os sumários “credais” mais importantes encontrados em Contra as Heresias são também confissões com três cláusulas. A passagem mais notável é aquela encontrada em 1,10,1:
A Igreja, embora dispersa por todo o mundo, até aos confins da terra, recebeu dos apóstolos e dos seus discípulos esta fé: [Ela crê] em um Deus, o Pai Todo-poderoso, Criador dos céus, da terra, do mar e de todas as coisas que neles estão; e em um Cristo Jesus, o Filho de Deus, que se encarnou para a nossa salvação; e no Espírito Santo, que proclamou através dos profetas as dispensações de Deus. . .
Outra referência importante é aquela encontrada em 4,33,7, que parece ter sido deliberadamente baseada em 1 Cor 8:6:
Ele [o verdadeiro discípulo espiritual] tem plena fé em um Deus Todo-poderoso, de quem são todas as coisas; e no Filho de Deus, Jesus Cristo nosso Senhor, por quem são todas as coisas, e nas dispensações referentes a Ele, por meio das quais o Filho de Deus se fez homem; e uma fé firme no Espírito de Deus, que nos proporciona o conhecimento da verdade, e tem apresentado as dispensações do Pai e do Filho, em virtude das quais Ele habita com cada geração dos homens, de acordo com a vontade do Pai.
Também existem vários exemplos de fórmulas com dois artigos (Adv. haer. 3,1,2; 3,42; 3,16,6; etc.).
Kelly pondera que, surpreendentemente, é tênue a influência de motivos anti-heréticos nestas várias declarações. Talvez isto seja verdade quanto às declarações em si mesmas, mas certamente os seus contextos não deixam dúvida quanto à sua intenção polêmica. É precisamente a partir dessas afirmações da regra da verdade que Irineu deriva os seus principais argumentos contra as noções gnósticas acerca de Deus e do seu relacionamento com a ordem criada.
5.2 Deus, Uno e Criador
Com Irineu, a afirmação de Deus como uno e criador assumiu importância especial, uma vez que a sua tarefa era refutar a teoria gnóstica de uma hierarquia de eons que desciam de um Deus Supremo incognoscível e o seu corolário de uma grande distância entre ele e o criador ou Demiurgo. Um texto torna clara esta posição: “O primeiro artigo de nossa fé”, explica Irineu, “é Deus o Pai, incriado, não-gerado, invisível, Divindade una e única, criador do universo” (Dem. 6; ver também Adv. haer. 2,1,1; 2,9,1; 2,16,3). Deus exerce a Sua atividade criadora através da Sua Palavra e da Sua Sabedoria ou Espírito (2,30,9). Ele criou ex nihilo (2,10,4), sendo esta provavelmente a primeira declaração cristã explícita da criação de todas as coisas a partir do nada. Para fundamentar estes princípios Irineu apela, além das Escrituras, à razão natural (Dem. 4).
Deus relaciona-se com o mundo não somente através da criação, mas também através da redenção. O Deus da salvação é o mesmo Deus da criação (Adv. haer. 4,6,2; 4,20,2), ou seja, não há senão um só Deus, que tanto cria como redime. O ensino gnóstico acerca de dois deuses era uma blasfêmia contra o Criador. Ele também implicava na impossibilidade da salvação, porque se Deus não criou, a criação também não poderia ser redimida. Se Deus não foi o criador, ele não iria salvar a criação. Todavia, este é o alvo de toda a ordem da criação. Para os gnósticos, a salvação consistia em serem libertos da criação, do mundo material; para Irineu, no entanto, a salvação significava que a própria criação seria restaurada ao seu estado original e alcançaria o seu destino conferido por Deus.
A visão gnóstica de Deus não somente punha em dúvida o princípio bíblico essencial do monoteísmo, mas impunha uma limitação seja ao poder ou à bondade de Deus. Contra estas concepções, Irineu afirma que Deus é um e único em sua majestade e bondade, e supremo no seu poder. Os termos que ele emprega são tomados, curiosamente, do judaísmo helenístico e da teologia do médio platonismo. Ele escreve que Deus é incriado, incompreensível, sem figura ou forma, impassível e incapaz de erro (Adv. haer. 4,38,2-3). Ele é estático, imutável (2,34,2), auto-contido e auto-suficiente (2,1,5; 4,16,4). Deus é, como Platão observou corretamente, incapaz de ser declarado e, portanto, como Irineu conclui de maneira não platônica, ele é conhecido somente na medida em que se dá a conhecer a si mesmo. Ele é simples, não-composto e totalmente diferente das coisas criadas (2,13,3).
Irineu também repete constantemente que Deus é sem limites. O verdadeiro Deus é ele mesmo o Pleroma, a “Plenitude” de todas as coisas. Como tal, ele não é contido por nada e todavia contém tudo o que existe (2,30,9; 2,1,1). Ele é ilimitado tanto no seu poder como na sua presença: não existe nada à parte dele e nada que não esteja sujeito a ele. Na sua simplicidade e eternidade não-originadas, Deus é o contexto imensurável de todo o ser, bem como a sua fonte—diferente de todas as criaturas, porém não separado de nenhuma delas.
Norris vê aqui uma diferença significativa entre Irineu e Justino. Enquanto que Justino tende a acentuar a transcendência radical do Criador sobre a sua criação, a agenda de Irineu requer uma maneira de afirmar a majestade transcendente de Deus que não pareça excluí-lo do mundo. A noção do caráter ilimitado de Deus não significa meramente que Deus não pode ser medido, mas também que nada impõe um limite ao seu poder e à sua presença. Assim, o que torna Deus diferente de toda criatura—a sua simplicidade eterna e não-gerada—é precisamente o que lhe assegura um relacionamento direto e íntimo com toda criatura.
5.3 A Divina Tríade
Da mesma maneira que os ensinos gnósticos levam Irineu a enfatizar a unidade de Deus, a regra da verdade ligada ao batismo o faz refletir sobre as distinções do Ser Divino: Pai, Filho e Espírito Santo. Irineu mostra a dificuldade de se reconciliar uma só realidade divina com tais distinções, isto é, como afirmar a unidade de Deus e ao mesmo tempo preservar a Tríade. No seu pensamento, as próprias relações das “pessoas” da Tríade permanecem obscuras. Ele trata das implicações da fórmula, mas se recusa a ir além disso; esta tarefa seria deixada para teólogos posteriores.
Como foi visto anteriormente, Irineu começa a sua exposição do Ser Divino a partir dos três artigos fundamentais do símbolo batismal. Uma passagem essencial éDemonstração . Lebreton observa apropriadamente que “a fim de julgar as heresias [Irineu] leva-as a esta regra fundamental e demonstra a oposição das mesmas aos três artigos do símbolo”. Por sua vez, Kelly argumenta que Irineu vai além dos apologistas em dois aspectos, a saber, na sua compreensão mais firme e afirmação mais explícita da noção de “economia” e no seu reconhecimento muito mais pleno do lugar do Espírito no esquema triádico.
A divina Tríade é invocada para mostrar com mais detalhes como Deus se relaciona com o mundo não somente na criação, mas na redenção. Irineu se acerca de Deus a partir de duas direções, vendo-o tanto como ele existe no seu ser intrínseco e também como ele se manifesta na economia, o processo ordenado da sua automanifestação. Do primeiro ponto de vista, Deus é o Pai de todas as coisas, inefavelmente um, e todavia contendo em si mesmo desde toda a eternidade a sua Palavra e a sua Sabedoria. Porém, ao dar-se a conhecer ou pôr-se em atividade na criação e na redenção, Deus manifesta esta Palavra e esta Sabedoria; como o Filho e o Espírito, elas são as suas “mãos”, os veículos ou formas da sua auto-revelação.
Norris pondera que a nota característica do ensino de Irineu acerca de Deus pode ser vista na sua luta com a doutrina do Logos herdada dos apologistas. Ele a utiliza, mas um tanto a contra-gosto e com cuidadosas qualificações. A Palavra ou o Verbo é visto como o Mediador. O Pai está “acima de tudo”, enquanto que a Palavra é “através de todas as coisas”. O Pai está de algum modo “fora” do mundo e a Palavra parece um poder intermediário através de quem Deus se relaciona com o mundo e atua nele. A Palavra é o Mediador da revelação: o Deus invisível e incompreensível não é dado a conhecer diretamente, mas através da sua Palavra.
Irineu não fica inteiramente satisfeito com esta linguagem. A sua oposição ao gnosticismo o torna avesso a qualquer sugestão de que existe mais de uma substância divina ou de que Deus está de algum modo separado do seu mundo. Assim, ele repudia todas as tentativas de se explorar o processo pelo qual o Logos/Verbo foi gerado (2,28,4-6; 2,13,8). Tal linguagem parece sugerir que o Logos é um estado intermediário entre Deus e a criação e parece implicar em distinções de grau dentro da Divindade. Ao mesmo tempo, o Verbo ou Filho é corretamente chamado “Deus” (Dem. 47); ele é distinto de tudo o que é gerado e coexiste com o Pai desde toda a eternidade (2,30,9; 3,18,1; 4,20,1).
Com o Filho Irineu associou intimamente o Espírito, argumentando que, se Deus era racional e portanto tinha o seu Logos, ele também era espiritual e assim tinha o seu Espírito (Dem. 5). Nisto, Irineu demonstrou ser um seguidor de Teófilo de Antioquia e não de Justino, identificando o Espírito, não o Verbo, com a Sabedoria divina, e assim fortalecendo a sua doutrina do Espírito Santo com uma base bíblica segura (Sl 33.6; Pv 3.19; 8.22-36; etc.). O Espírito é plenamente divino, ainda que em nenhum lugar Irineu o designe expressamente como Deus, pois ele é o Espírito de Deus, continuamente brotando do seu ser (5,12,2).
Irineu também é bastante peculiar e criativo no seu ensino acerca do Verbo e da Sabedoria, o Filho e o Espírito, como “as duas mãos de Deus” (4,20,1), uma imagem que faz lembrar Jó 10:8a e Salmo 119:73. Esta é outra maneira pela qual ele acentua a doutrina de um Deus imediatamente presente e ativo. É o próprio Deus Supremo que está empenhado numa atividade criadora neste mundo. Lawson observa que este ensino denota uma “ação direta”, em contraste com os anjos intermediários dos sistemas gnósticos (Adv. haer. 4,7,4). Irineu também fala do “Pai que planeja tudo bem e dá as suas ordens, o Filho que as executa e realiza a obra de criação, e o Espírito que nutre e faz crescer. . .” (4,38,3). Vê-se aqui um esforço de preservar a igualdade do status divino entre o Filho e o Espírito exigida pela fórmula triádica. Assim, “as duas mãos de Deus” é uma expressão do caráter imediato da criação, não do seu caráter mediato.
O Verbo e o Espírito colaboram na obra de criação e direção (4,20,2; Dem. 5) e também nas atividades de inspiração e revelação. O Verbo revela o Pai (4,6,3; 4,6,6). Na encarnação o Verbo, até então invisível aos olhos humanos, tornou-se visível e manifestou pela primeira vez aquela imagem de Deus a cuja semelhança o ser humano foi originalmente criado (5,16,2). O Espírito atuou nos profetas e nos crentes da antigüidade; somente ele capacita as pessoas a conhecerem o Filho (Dem. 6,7). A santificação é inteiramente obra do Espírito.
Lawson acredita que o tratamento mais profundo e consistente da natureza de Deus feito por Irineu está em Adv. haer. 4,20,1-12, um capítulo que inicia com a celebração do amor de Deus. No centro da religião de Irineu, está o conceito do amor auto-comunicativo de Deus. Porque ele ama, Deus livremente dá de si mesmo na criação, nos profetas e no Filho do seu amor.
Conclusão
A visão de Irineu acerca da Divindade é a mais completa e também a mais explicitamente “trinitária” que se pode encontrar antes de Tertuliano. Seus característicos do segundo século destacam-se claramente, particularmente em sua apresentação da Tríade através da imagem, não de três pessoas co-iguais (conceito pós-niceno), mas de um único personagem, o Pai, que é a própria Deidade, com a sua mente ou racionalidade e a sua sabedoria.
Confrontado com as extravagâncias gnósticas, Irineu permaneceu extremamente avesso à investigação das profundezas ontológicas da Tríade e das relações entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O fato importante destacado pela fórmula batismal e acentuado por Irineu é que existem distinções reais no ser imanente do Pai único e indivisível e que, embora somente tenham sido plenamente manifestas na “economia”, elas realmente estavam presentes desde toda a eternidade.
A teologia de Irineu é um tributo à sua fé no Deus triúno, à sua capacidade intelectual e ao seu compromisso com a Igreja. É também uma evidência eloqüente da força interior e da crescente influência do cristianismo primitivo, que teve no bispo de Lião um dos seus mais notáveis e dignos representantes. Nos dias atuais, em que diversos sistemas neo-gnósticos e pseudocristãos continuam a questionar a fé cristã histórica, o exemplo de Irineu nos incentiva a aprofundar a nossa reflexão teológica à luz das Escrituras e da experiência da Igreja.
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FÉ E DOGMA: AS CONTROVÉRSIAS CRISTOLÓGICAS DA IGREJA ANTIGA.
PORTAL MAKENZIE / Alderi S. de Matos
Introdução
A palavra "teologia" desperta reações contraditórias nas pessoas. Para alguns, trata-se de uma atividade não só legítima como indispensável para a Igreja e para os cristãos. Para outros, é algo artificial e condenável, uma produção humana que distorce a revelação de Deus. Tudo de que o crente necessita, dizem eles, é a Palavra de Deus, sem as especulações e os devaneios dos teólogos. Todavia, o fato é que, mesmo sem o saber, todo cristão faz teologia. Essa teologia pode ser boa ou ruim, equilibrada ou tendenciosa, mas todos a fazem. Quando um humilde pregador pentecostal abre a sua Bíblia e começa a interpretá-la, explicá-la e aplicá-la aos seus ouvintes, está fazendo teologia, por mais que desconheça ou deteste essa palavra.
A teologia não é nada mais, nada menos, que a reflexão acerca das Escrituras e da fé cristã. Uma definição acadêmica diz que ela é "a exposição raciocinada da fé". Como tal, é uma tarefa inevitável da igreja. Uma das razões para isso é a própria riqueza e complexidade das Escrituras e a possibilidade de diferentes entendimentos de muitos de seus textos e ensinos. A Igreja Antiga, ainda nos seus primeiros tempos, defrontou-se com esse desafio. Diante das dissidências internas, ou seja, indivíduos e grupos que faziam interpretações divergentes da mensagem cristã, e dos desafios externos, representados pelos críticos pagãos, os cristãos sentiram a necessidade premente de explicitar e articular de maneira clara e convincente as suas convicções, à luz das Escrituras.
1. Problemas iniciais
Obviamente, a questão mais central da fé cristã é aquela que diz respeito ao próprio Jesus Cristo. Desde cedo, os cristãos se puseram a refletir intensamente sobre a pessoa e a identidade do Salvador, motivados, inclusive, por considerações apologéticas e missionárias. Era crucial que eles tivessem bastante clareza sobre aquele que havia se tornado o principal ponto de referência de suas vidas. Partindo dos dados bíblicos, especialmente a descrição joanina de Cristo como o Logos ou Verbo (Jo 1.1, 14; 1 Jo 1.1; Ap 19.13), houve o florescimento de uma grande diversidade de concepções, muitas das quais foram consideradas pela Igreja como insatisfatórias ou simplesmente errôneas.
Entre essas concepções, estavam as que foram englobadas pelo termo "monarquianismo", um grande esforço feito nos séculos segundo e terceiro para preservar, nas discussões sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, uma importante herança recebida pela Igreja do judaísmo - o monoteísmo, ou seja, a afirmação radical da existência de um só Deus. Parecia a muitos cristãos do período que afirmar a divindade do Pai, do Filho e do Espírito era defender o triteísmo, isto é, a existência de três deuses. As diferentes correntes monarquianistas foram classificadas pelos estudiosos em dois grandes grupos.
O "monarquianismo dinâmico" ou adocionismo negava pura e simplesmente a divindade de Cristo, declarando que Jesus era um mero homem que foi adotado por Deus como filho por ocasião do seu batismo (Mt 3.16-17), sendo revestido pelo poder do Espírito Santo (em grego, "poder" = dynamis, daí dinâmico). Já o "monarquianismo modalista" entendia que Pai, Filho e Espírito Santo eram apenas três "modos" ou manifestações sucessivas do único Deus. Isto é, Deus revelou-se inicialmente como Pai, depois como Filho e finalmente como Espírito Santo. Uma variação dessa corrente, o "patripassianismo", dizia que o próprio Pai sofreu e morreu na cruz. O monarquianismo procurava salvaguardar a unidade de Deus pela negação seja da divindade, seja da personalidade distinta do Filho e do Espírito Santo. Foi rejeitado pela Igreja Antiga devido à convicção de que as suas posições não faziam justiça ao testemunho das Escrituras.
2. A controvérsia ariana
A realidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo era fundamental para a identidade dos primeiros cristãos desde o dia em que abraçavam a nova fé. No próprio momento do seu batismo, de sua iniciação na vida cristã, essa tríplice realidade era invocada e confessada pelo oficiante e pelo batizando. Vários escritores cristãos dos primeiros séculos fizeram reflexões extremamente penetrantes acerca desse tema, como foi o caso de Irineu de Lião e Tertuliano de Cartago. Mas, foi somente nos séculos quarto e quinto que as discussões teológicas a respeito da "tríade divina" produziram seus frutos mais ricos e duradouros.
O início do século quarto marcou um dos momentos mais decisivos da história do cristianismo. A adesão do imperador Constantino à fé cristã e o conseqüente Edito de Milão (ano 313) puseram fim a uma longa história de perseguições e deram início a uma história ainda mais longa de ligações entre a Igreja e o Estado. Poucos anos após a ascensão de Constantino, um presbítero de Alexandria, no Egito, chamado Ário, começou a divulgar as suas idéias a respeito de Cristo. Segundo ele, Cristo era muito superior aos seres humanos, mas inferior ao Pai, tendo sido criado por ele antes da existência do mundo. A acirrada controvérsia que se seguiu foi interpretada pelo imperador como um perigo tanto para a unidade da Igreja quanto para a integridade do império. A fim de resolver o problema, ele convocou os bispos cristãos para se reunirem na cidade de Nicéia, perto da capital imperial, Constantinopla, no ano 325.
3. Nicéia e Constantinopla
O Concílio de Nicéia, o primeiro dos chamados concílios ecumênicos da Igreja Antiga, reuniu cerca de 250 bispos, quase todos da parte oriental ou grega do Império Romano, e representou uma mistura preocupante de agendas políticas e teológicas. Depois de intensos debates, aos quais não faltaram as interferências do monarca, o "arianismo" foi condenado como herético, sendo declarada vitoriosa a posição que defendia a personalidade distinta e a plena divindade de Cristo. O Concílio produziu um famoso Credo cujo ponto culminante foi a declaração de que o Filho era homoousios ou "consubstancial" com o Pai. Todavia, por muitos anos houve fortes resistências contra a "doutrina da trindade" articulada pelos bispos reunidos em Nicéia.
Foi somente através dos esforços de alguns hábeis teólogos que essa doutrina finalmente veio a encontrar ampla aceitação na região oriental do Império Romano. Quatro deles destacaram-se em especial: Atanásio de Alexandria, Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo, sendo estes últimos conhecidos como "os três capadócios". Em sua argumentação, eles apelaram tanto às Escrituras como à experiência da Igreja. Somente um Cristo que fosse ao mesmo tempo divino e humano poderia ser o verdadeiro e eficaz mediador entre Deus e os homens. Por outro lado, os cristãos desde o princípio aprenderam a exaltar a Cristo, adorá-lo no culto e dirigir orações a ele. Somente um ser divino merecia ser tratado desse modo.
O triunfo da ortodoxia de Nicéia foi sacramentado no Concílio de Constantinopla (ano 381), novamente no contexto de um importante evento político-religioso - a oficialização do cristianismo católico como a religião do império, no ano 380, pelo imperador Teodósio I. Os bispos reunidos na capital imperial reafirmaram as declarações de Nicéia, esclarecendo melhor alguns pontos obscuros e fazendo uma afirmação explícita da personalidade e divindade do Espírito Santo. O novo credo assim produzido ficou conhecido como Credo "Niceno" ou Niceno-Constantinopolitano.
4. Discutindo as duas naturezas
Finalmente, na primeira metade do século quinto, uma nova controvérsia abalou a cristandade, dessa vez a respeito da relação entre as duas naturezas de Cristo, a divina e a humana. Duas posições básicas se manifestaram desde o início, representadas essencialmente pelas célebres escolas de interpretação bíblica de Alexandria e Antioquia. Os alexandrinos entendiam que o Verbo divino uniu-se à carne, sendo o Cristo encarnado uma pessoa plenamente integrada. Acentuavam, pois, a unidade da pessoa de Cristo, dando mais ênfase à sua divindade do que à sua humanidade. Desse raciocínio resultaram duas posições que foram eventualmente rejeitadas: o "apolinarismo", segundo o qual Jesus era uma combinação de alma racional divina (o Verbo) e corpo humano, e o "monofisismo", que afirmava que as duas naturezas fundiram-se em uma só, a divina.
Já os antioquianos entendiam que Cristo tinha tanto uma plena natureza divina quanto uma plena natureza humana. Seu problema estava na tendência de dividir em duas a pessoa de Cristo. O grande defensor dessa posição foi Nestório, o Patriarca de Constantinopla. Ele afirmava com tanta ênfase a distinção das naturezas que parecia ensinar que havia duas pessoas em Cristo, uma divina e outra humana. Essas questões foram tratadas em outros dois concílios ecumênicos. O Concílio de Éfeso (ano 431) condenou o "nestorianismo" e o Concílio de Calcedônia (451) condenou também o apolinarismo e o monofisismo. Este último concílio formulou as suas conclusões na célebre Definição de Calcedônia: "Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e o mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade e perfeito quanto à humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e corpo; consubstancial ao Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade... Um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação..."
5. Desdobramentos posteriores
Desde então, esse entendimento da pessoa de Cristo foi amplamente aceito pelos católicos romanos, pelos ortodoxos gregos, e mais tarde pela maior parte dos protestantes. É parte daquilo que se denomina a Fé Cristã Histórica. Todavia, desde aquela época até os nossos dias, têm surgido críticas contra essas formulações doutrinárias da Igreja Antiga, alegando-se desde o uso de terminologia extrabíblica e influências do pensamento grego até as interferências políticas na vida da Igreja. Nos últimos séculos, muitos indivíduos e grupos têm simplesmente negado essas formulações históricas, retrocedendo a antigas posições que foram condenadas pelas mesmas.
O fato é que, mesmo reconhecendo-se esses problemas e a consideração adicional de que as declarações doutrinárias não são infalíveis, as doutrinas ou dogmas cristológicos da Igreja Antiga, são aceitos pela maioria dos cristãos como uma expressão autêntica da fé bíblica, refletindo de maneira fiel as convicções básicas de incontáveis gerações de seguidores de Cristo. Por limitadas que sejam essas formulações, pois que vazadas em linguagem e categorias de pensamento humanas e condicionadas, elas continuam insuperadas na beleza de seus termos, na profundidade e equilíbrio das suas declarações e no esforço de fazer justiça à totalidade do ensino das Escrituras a respeito de Cristo, sua pessoa e sua obra. Elas reafirmam, em linguagem teológica, a grandiosa mensagem de que "o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai" (Jo 1.14).
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PAZ DO SENHOR
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