MOVIMENTO PENTECOSTAL NO
BRASIL
O MOVIMENTO PENTECOSTAL:
REFLEXÕES A
PROPÓSITODO SEU
PRIMEIRO CENTENÁRIO
Alderi S.
de Matos (Portal Makenzie)
Introdução
O moderno movimento pentecostal é considerado por muitos estudiosos o
fenômeno mais revolucionário da história do cristianismo no século 20, e talvez
um dos mais marcantes de toda a história da igreja. Em relativamente poucas
décadas, as igrejas pentecostais reuniram uma imensa quantidade de pessoas em
praticamente todos os continentes, totalizando hoje, segundo cálculos de
especialistas, cerca de meio bilhão de adeptos ao redor do mundo. Mais do que
isso, o pentecostalismo acarretou mudanças profundas no panorama cristão,
rompendo com uma série de padrões que caracterizavam as igrejas protestantes há
alguns séculos e propondo reinterpretações muitas vezes bastante radicais da
teologia, do culto e da experiência religiosa. Exatamente agora, sem que muitos
se dêem conta – inclusive muitos pentecostais – esse vasto e influente
movimento está completando um século. Rigorosamente falando, o pentecostalismo
como um fenômeno distinto surgiu nos últimos anos do século 19 ou nos primeiros
do século 20. Todavia, por algum tempo ele se manteve relativamente modesto e circunscrito
às fronteiras dos Estados Unidos. Seu crescimento vertiginoso e sua difusão
internacional ocorreram a partir do famoso Avivamento da Rua Azusa, em Los
Angeles, que teve início em abril de 1906.
No Brasil, a magnitude do pentecostalismo é evidente a todos os
observadores. Há muitos anos esse segmento congrega a maioria dos protestantes.
De acordo com o Censo de 2000, dos 26,2 milhões de evangélicos brasileiros,
17,7 milhões são pentecostais (67%).[1] O crescimento vertiginoso que o
protestantismo nacional tem experimentado em décadas recentes reflete
principalmente o que ocorre nas igrejas pentecostais. Por causa dos seus
pressupostos explícitos ou implícitos, esse movimento tem uma notável capacidade
de reinventar-se a cada geração, assumindo formas novas e inusitadas. Isso já
ocorreu no passado e ocorre novamente agora com o neopentecostalismo, um
fenômeno nitidamente brasileiro. Assim como está se tornando comum falar em
protestantismos, também se faz cada vez mais necessário falar em
pentecostalismos, tal a diversidade do movimento. Outro fenômeno digno de nota
– alvissareiro para alguns e inquietante para outros – é a adoção da cosmovisão
pentecostal nas igrejas históricas, quer a católica, quer as protestantes,
através do chamado movimento carismático ou de renovação.
Por essas e outras razões, é oportuno fazer-se uma nova reflexão sobre
esse tema já tão estudado. O enorme crescimento do pentecostalismo e o impacto
que tem causado nas igrejas e na sociedade, particularmente no Brasil, tornam
necessário um reexame da história e características, bem como das
possibilidades e limitações, desse movimento que completa um século de
trajetória histórica. A argumentação deste artigo obedecerá a seguinte
seqüência: inicialmente será apresentado um panorama dos antecedentes do
pentecostalismo e das origens históricas e teológicas desse movimento nos
Estados Unidos; em seguida, se fará uma breve síntese da história, evolução e
peculiaridades do pentecostalismo brasileiro; por fim, será feita uma avaliação
dos problemas e contribuições do movimento, sugerindo-se como as igrejas
reformadas devem relacionar-se com ele.
1. Antecedentes na história da igreja
Assim como ocorre em outras religiões, o cristianismo tem, ao longo da sua
história, testemunhado muitas vezes em suas fileiras a ocorrência de
manifestações de entusiasmo religioso, em especial os movimentos chamados
carismáticos. O termo “entusiasmo” (do grego en = “em” e theós = “Deus”) aponta
para situações em que as pessoas afirmam receber revelações diretas de Deus,
muitas vezes acompanhadas de êxtases místicos, visões e outros fenômenos
associados a uma experiência religiosa de grande fervor e intensidade. Por sua
vez, a palavra “carismático” lembra os carismas ou dons espirituais mencionados
no Novo Testamento, particularmente aqueles extraordinários ou espetaculares,
tais como profecias, línguas estranhas, curas e milagres diversos.
O primeiro exemplo dessas manifestações pode ser constatado na igreja de
Corinto, nos dias apostólicos. Ao contrário do que parece ter ocorrido nas
outras igrejas ligadas aos apóstolos, havia entre os cristãos coríntios um
grupo de pessoas com inclinações místicas, que alguns estudiosos denominam os
“espirituais”, os quais valorizavam grandemente certas experiências e práticas
religiosas, tais como profecias e línguas extáticas, e tinham a tendência de
menosprezar os cristãos que não apresentavam as mesmas manifestações.[2] Embora
o próprio apóstolo Paulo indique ter tido, ele mesmo, algumas experiências
espirituais incomuns, ele se mostra discreto em relação a elas e insiste em não
torná-las uma norma para todos os cristãos. Ao mesmo tempo, Paulo demonstra sua
preocupação com os excessos e distorções freqüentemente associados a tais
práticas, como se pode ver em 1 Coríntios 12–14.
O mais notório movimento carismático do cristianismo antigo foi o
montanismo, surgido na Frigia, Ásia Menor, na parte posterior do 2° século
(década de 170). Seu fundador, Montano, fez a alegação de ser o porta-voz do
Espírito Santo que iria anunciar a volta de Cristo e a descida da Nova
Jerusalém. Apelando para visões e profecias, ele e duas discípulas, Priscila e
Maximila, exortaram os cristãos a se santificarem como preparação para o final
dos tempos. A “Nova Profecia”, como o movimento se autodenominou, desprezou a
“igreja católica”, com seus bispos, suas Escrituras e sua tradição nascente,
alegando ter uma autoridade vinda diretamente do Espírito Santo. Excluídos da
igreja majoritária, os montanistas organizaram-se separadamente, subsistindo
por algum tempo. No final da vida, Tertuliano (c.160-c.225), um dos mais
brilhantes e influentes teólogos cristãos dos primeiros séculos, nutriu
simpatias por esse movimento. Sendo partidário de um cristianismo rigoroso e
disciplinado, esse pai da igreja sentiu-se atraído pela moralidade ascética dos
adeptos da Nova Profecia.
A experiência negativa com os montanistas e suas atitudes contestadoras
fez com que a igreja desestimulasse fortemente as manifestações dos dons
espirituais de natureza espetacular e miraculosa, principalmente quando tais
dons colocavam em risco a autoridade da igreja e de seus líderes ou sua
interpretação da Bíblia. Não obstante, ao longo dos séculos, a mentalidade
entusiástica continuou a manifestar-se esporadicamente no seio do cristianismo,
dando origem a grupos com diferentes graus de ortodoxia, como os cátaros, os
begardos e beguinas, e o apocaliptismo de Joaquim de Fiore, no século 12. No
século 16, os reformadores protestantes se defrontaram repetidamente com
pessoas e grupos, principalmente anabatistas, que apelavam para revelações
diretas de Deus e tendiam a relativizar a importância das Escrituras. Esses
indivíduos receberam os epítetos de “entusiastas”, “libertinos”, “fanáticos” e
“espiritualistas”, sendo objeto de alguns dos escritos mais contundentes de
Lutero, Calvino e outros líderes.[3]
O fato é que o protestantismo, devido à sua insistência em direitos como o
livre exame das Escrituras, o sacerdócio de todos os cristãos e a liberdade de
expressão e associação, sem querer abriu um espaço para o surgimento dessas
manifestações. Desde então, o entusiasmo religioso se tornou um fenômeno
relativamente freqüente nas hostes protestantes. Alguns exemplos mais
conhecidos foram os quacres ingleses (século 17), com sua ênfase na “luz
interior”, os avivamentos dos séculos 18 e 19, tanto na Europa quanto na
América do Norte, e o ministério de Edward Irving (século 19), um pastor
presbiteriano escocês que trabalhou em Londres e é considerado o precursor do
moderno movimento carismático.[4] Apesar dos seus problemas, esses movimentos
com freqüência revelavam insatisfações legítimas com a igreja oficial e o
desejo de uma espiritualidade mais profunda.
2. Raízes na tradição metodista
O movimento pentecostal surgiu no ambiente religioso altamente dinâmico e
volátil dos Estados Unidos no século 19. O cenário religioso das colônias
inglesas da América do Norte havia sido relativamente estável até meados do
século 18. Todavia, com o passar do tempo as influências do pietismo alemão, do
puritanismo e do movimento metodista se somaram para produzir mudanças. Nas
décadas de 1730 e 1740, a ocorrência do Primeiro Grande Despertamento trouxe
revitalização às igrejas protestantes, mas, ao mesmo tempo, produziu um tipo
diferente de cristianismo, mais emocional, mais independente das antigas
estruturas e tradições, mais desejoso de novas formas de experimentar o
sagrado. Essas ênfases se intensificaram em muito com o surgimento do Segundo
Grande Despertamento, ocorrido na região da fronteira oeste durante as
primeiras décadas do século 19. Sob a influência de pregadores como Charles G.
Finney (1792-1875), houve um progressivo questionamento da teologia reformada
tradicional, com seu enfoque na soberania de Deus, e uma ênfase crescente na
liberdade, iniciativa, capacidade de decisão e experiência pessoal, em sintonia
com a nova cultura americana que então se consolidava.
Desde então, o avivalismo, ou seja, atividades voltadas para a promoção de
uma vida espiritual mais intensa e fervorosa, se tornou uma característica
permanente do cenário religioso norte-americano. Essa preocupação encontrou as
suas expressões mais visíveis nos “camp meetings” (conferências de avivamento)
das zonas rurais e nas grandes campanhas evangelísticas urbanas. Essa poderosa
efervescência espiritual também resultou no surgimento de um sem número de
novos movimentos religiosos, alguns dentro dos limites do protestantismo
histórico e outros bastante distanciados do mesmo, como shakers, mórmons e
testemunhas de Jeová.
Os estudiosos têm adotado diferentes abordagens na busca de compreender a
gênese do pentecostalismo. Em um artigo recente, Leonildo Silveira Campos
privilegia o enfoque sociológico, destacando como as peculiaridades culturais e
as transformações sociais e econômicas dos Estados Unidos no século 19
contribuíram para a ocorrência do fenômeno.[5] Outros autores têm dado maior
ênfase às matrizes teológicas do movimento, acentuando que, apesar de toda a
sua especificidade, o pentecostalismo é fruto de desdobramentos doutrinários
ocorridos durante quase um século no cenário protestante norte-americano.[6]
Apesar da possibilidade de influências como o puritanismo e o piestismo, a
maioria dos autores considera que a origem básica do movimento pentecostal se
encontra no metodismo wesleyano, e especificamente na doutrina mais
característica de João Wesley: a “inteira santificação” ou “perfeição cristã”,
um conceito que ele também descrevia em termos de “a mente de Cristo”, “plena
devoção a Deus” ou “amor a Deus e ao próximo”.
Wesley via essa experiência como um alvo a ser buscado ao longo da vida
cristã, embora tenha hesitado em concluir se era fundamentalmente um processo
ou um evento instantâneo. Um desdobramento significativo ocorreu através do seu
sucessor designado, John Fletcher, que começou a descrever a plena santificação
como um batismo do Espírito Santo em termos do Pentecoste do Novo Testamento.
Ao apontar a diferença entre o seu entendimento e o de Wesley, ele disse o
seguinte:
Vocês encontrarão as minhas idéias sobre essa questão nos sermões do Sr.
Wesley sobre Perfeição Cristã e sobre o Cristianismo Bíblico, com a seguinte
diferença: eu distinguiria mais precisamente entre o crente batizado com o
poder pentecostal do Espírito Santo e o crente que, como os apóstolos após a
ascensão de nosso Senhor, ainda não está revestido desse poder.[7]
Outra ênfase peculiar de Fletcher, novamente em contraste com Wesley, foi
sua divisão da história em três dispensações: do Pai, do Filho e do Espírito
Santo, esta última tendo iniciado no Pentecoste e se estendendo até a segunda
vinda de Cristo. É significativo que essa perspectiva também passou a ser usada
para descrever os estágios de desenvolvimento espiritual pelos quais cada
indivíduo devia passar. Em suma, a orientação cristocêntrica, centrada na
tradição bíblica paulina e joanina, que era característica de Wesley, passou a
ter em Fletcher uma orientação pneumatocêntrica e lucana, com destaque especial
ao livro de Atos dos Apóstolos. Todavia, a transição efetiva de uma cosmovisão
para a outra somente iria se consumar no contexto norte-americano.[8]
Durante o Segundo Grande Despertamento (primeiras décadas do século 19), o
metodismo experimentou um crescimento sem precedentes nos Estados Unidos, só
igualado pelos batistas. Mais que a expansão numérica, as idéias e práticas
metodistas se infiltraram em muitas outras denominações. Entre essas idéias e
práticas podem ser citadas a pregação extemporânea com forte conteúdo
emocional, os apelos insistentes seguidos de assistência espiritual aos
convertidos ao término das reuniões, a participação de mulheres falando e
orando em reuniões para ambos os sexos, e a forte ênfase na teologia arminiana.
Em conseqüência disso, os historiadores falam da “arminianização da teologia
americana” nesse período, com a resultante rejeição da teologia calvinista. Um
dos expoentes dessa teologia foi o mencionado evangelista Charles Finney, de
origem presbiteriana.
A partir da década de 1830, a crescente insistência na perfeição cristã
resultou em uma cruzada ou avivamento da “santidade” (em inglês “holiness”),
que teve como personagem central Phoebe Palmer, esposa de um médico de Nova
York. Por muitos anos ela liderou reuniões semanais para a promoção da
santidade, publicou um influente periódico e viajou extensamente como
evangelista itinerante na América do Norte e na Europa. O tema da santidade
saturou a literatura da época, sendo publicadas inúmeras obras sobre o assunto.
No Oberlin College, em Ohio, onde Finney era professor de teologia, surgiu o
chamado “perfeccionismo de Oberlin”, que dava forte destaque ao ativismo social.
O avivamento de 1857-1858, considerado por alguns o Terceiro Grande
Despertamento, difundiu de modo especial os ideais dos movimentos de santidade
e de perfeição cristã. Desse modo, o contexto avivamentista norte-americano
moldou o pensamento metodista em novas direções. Exemplo disso foi a tendência
de resolver a tensão wesleyana entre crise e processo mediante uma crescente
ênfase no caráter instantâneo da inteira santificação como uma “segunda obra da
graça”. A santidade passou a ser vista como o pressuposto e não como o alvo da
vida cristã.[9]
Um desdobramento significativo ocorreu quando, nas décadas posteriores à
Guerra Civil (1861-1865), o discurso e a simbologia do Pentecoste
neotestamentário começaram a dominar cada vez mais o movimento de santidade e
suas igrejas. A santidade cristã começou mais e mais a ser entendida em termos
do batismo com o Espírito Santo, sendo considerada uma “segunda bênção”,
distinta da conversão. Ao mesmo tempo deu-se ênfase crescente ao Pentecoste
como o arquétipo dos avivamentos e à importância de resgatar a vitalidade e o
poder do cristianismo primitivo. Outros destaques foram as profecias,
geralmente no sentido sobrenatural e extático, as curas e os milagres. A
hinódia também foi afetada, tendo surgido vários “hinários pentecostais”.
Nessa época, muitas igrejas metodistas e de outras denominações que
abraçaram o movimento “holiness” e sua teologia passaram a criar as suas
próprias associações. A primeira foi a Associação Nacional Holiness, criada em
1867 em Vineland, Nova Jersey, e a maior delas a Associação Holiness de Iowa,
de 1879. Com o passar do tempo, alguns líderes holiness passaram a falar no
“batismo com o Espírito Santo e com fogo” como sendo uma terceira experiência
na vida cristã, distinta tanto da conversão quanto da plena santificação. Nos
últimos anos do século 19, surgiram as primeiras denominações do movimento de
santidade: a Igreja de Deus em Cristo (1897), em Lexington, Mississipi, e a
Igreja Pentecostal Holiness (1898), em Goldsboro, Carolina do Norte. Ao
aproximar-se o século 20, todas essas correntes do movimento de santidade
tinham em comum uma mentalidade, linguagem e simbologia “pentecostal”,
valorizando altamente a experiência do batismo “com”, “do” ou “no” Espírito
Santo narrada em Atos 2. Todavia, ainda faltava um último passo a ser dado
nessa evolução doutrinária.
3. Primórdios do movimento pentecostal
No ano de 1900, um pregador metodista influenciado pelo movimento de
santidade, Charles Fox Parham (1873-1929), criou um instituto bíblico na cidade
de Topeka, Estado do Kansas, na região central dos Estados Unidos. Há cerca de
dez anos ele vinha ensinando que a glossolalia – falar em línguas desconhecidas
ou estrangeiras – devia acompanhar esse batismo no Espírito Santo tão popular
nos círculos holiness. Por algum tempo, ele chegou a acreditar que os crentes
receberiam o conhecimento sobrenatural de línguas terrenas para que pudessem
rapidamente evangelizar o mundo antes da volta de Cristo. Já havia ocorrido a
manifestação de línguas em anos anteriores nos Estados Unidos, assim como em
outros períodos da história do cristianismo. A novidade na teologia de Parham é
que ele foi o primeiro a considerar o “falar em línguas” como a evidência
inicial do batismo no Espírito Santo. Foi essa característica que se tornou a
marca distintiva do movimento pentecostal.
No dia 31 de dezembro de 1900, Parham e seus alunos realizaram um culto de
vigília em seu instituto bíblico para aguardar a chegada do novo século. Uma
evangelista de 30 anos, Agnes Ozman, pediu que lhe impusessem as mãos para que
ela recebesse o Espírito Santo a fim de ser missionária no exterior. Ela falou
em línguas, fenômeno esse que se repetiu nos dias seguintes com metade das
pessoas da escola, inclusive Parham. Nos anos seguintes, Parham deu
continuidade ao seu trabalho em várias partes dos Estados Unidos e no Canadá,
atraindo milhares de seguidores. Nessa mesma época, ocorreu um movimento
semelhante na Grã-Bretanha, que ficou conhecido como “o grande avivamento do
País de Gales”. O avivamento galês despertou em muitos o desejo de que um
episódio semelhante ocorresse novamente, multiplicando-se as reuniões de oração
nesse sentido.[10]
O movimento de Parham recebeu diferentes nomes – fé apostólica, movimento
pentecostal ou chuva tardia – todos os quais apontavam para características
marcantes da nova cosmovisão. Uma das idéias centrais era o que se denomina
“repristinação” ou restauracionismo, isto é, o desejo de voltar aos dias
iniciais do cristianismo, aos primeiros tempos da igreja primitiva, idealizados
como uma época de maior fervor e plenitude cristã. Associada a isso estava a
nova linguagem que dava ênfase ao poder do Espírito, conforme manifesto entre
os apóstolos através de sinais e maravilhas. Essa linguagem passou a ser uma
distinção importante entre os dois movimentos: enquanto a tradição holiness
dava maior destaque à santidade ou santificação, o movimento pentecostal passou
a privilegiar o conceito de poder.
O terceiro nome, “chuva tardia”, se tornou especialmente significativo porque
por meio dele os pentecostais puderam entender o seu relacionamento tanto com a
igreja apostólica quanto com o iminente final dos tempos. Dayton explica a
lógica interna do movimento: “O Pentecoste original do Novo Testamento foram as
‘primeiras chuvas’, o derramamento do Espírito que acompanhou a ‘plantação’ da
igreja. O pentecostalismo moderno são as ‘últimas chuvas’, o derramamento
especial do Espírito que restaura os dons nos últimos dias como parte da
preparação para a colheita, o retorno de Cristo em glória”.[11] O mesmo autor
observa que a estrutura da “chuva tardia” transforma o maior problema
apologético do pentecostalismo – sua descontinuidade com as formas clássicas do
cristianismo – em um valioso recurso apologético: “A longa estiagem desde o
período pós-apostólico até o tempo presente é vista como parte do plano
dispensacional de Deus para as eras”.[12] Em suma, o pentecostalismo foi
entendido pelos seus primeiros simpatizantes como o derramamento final do
Espírito de Deus que iria preparar a igreja para o derradeiro esforço pela
evangelização do mundo antes da volta do Senhor.
3.1 O Avivamento da Rua Azusa
Em 1905, Charles Parham mudou-se para o Texas e iniciou uma escola bíblica
em Houston. Um dos estudantes atraídos por essa escola foi um ex-garçom negro e
pregador holiness, William Joseph Seymour (1870-1922).[13] Era o período da
discriminação racial no sul dos Estados Unidos e Parham era simpatizante desse
sistema. Seymour assistia às aulas sentado em uma cadeira no corredor ao lado da
sala. Algumas semanas mais tarde, ele recebeu o convite para visitar um pequeno
grupo batista em Los Angeles. Esse grupo de afro-americanos, pastoreado por uma
mulher, Julia Hutchins, havia sido expulso de sua igreja por esposar doutrinas
holiness. Seymour, então com trinta e cinco anos, era filho de escravos, tinha
pouca cultura, limitados dotes de oratória e era cego de um olho. Escolheu o
texto de Atos 2.4 para o seu primeiro sermão em Los Angeles, embora ele mesmo
nunca tivesse falado em línguas. A pastora não gostou do seu ensino, mas ele,
acompanhado por boa parte do grupo, passou a fazer as reuniões na casa onde
estava hospedado. Quando esta se tornou pequena, foram para outra um pouco
maior, na Rua Bonnie Brae, onde o avivamento começou no dia 9 de abril de
1906.[14]
Com o passar dos dias, várias pessoas começaram a falar em línguas,
primeiro negros, depois brancos, e finalmente o próprio Seymour teve essa
tão-sonhada experiência (12 de abril). Nesse mesmo dia, a varanda da frente
dessa residência desabou devido ao peso da multidão. Com isso, os líderes
alugaram um rústico edifício de madeira na Rua Azusa, perto do centro de Los
Angeles. Esse prédio havia abrigado uma igreja metodista negra e posteriormente
tinha sido usado como cortiço e estábulo. Imediatamente as reuniões atraíram a
atenção da imprensa. O principal jornal da cidade mandou um repórter ao local e
este escreveu ridicularizando os fenômenos presenciados. Esse artigo,
intitulado “Estranha babel de línguas”, foi publicado no mesmo dia em que um
terremoto seguido de um incêndio destruiu a cidade de San Francisco (18 de
abril de 1906), no norte na Califórnia. O artigo funcionou como propaganda
gratuita e logo em seguida ocorreu o Avivamento da Rua Azusa.
As reuniões eram eletrizantes e barulhentas. Começavam às 10 horas da
manhã e prosseguiam por pelo menos doze horas, muitas vezes terminando às 2 ou
3 da madrugada seguinte. Não havia hinários, liturgia ou ordem de culto. Os
homens gritavam e saltavam através do salão; as mulheres dançavam e cantavam.
Algumas pessoas entravam em transe e caiam prostradas. Até setembro, 13.000
pessoas passaram pelo local e ouviram a nova mensagem pentecostal. Um bom
número de pastores respeitáveis foi investigar o que estava ocorrendo e muitos
deles acabaram se rendendo ao que presenciaram.
Uma característica marcante dessas primeiras reuniões foi o seu caráter
multi-racial, com a participação de negros, brancos, hispanos, asiáticos e
imigrantes europeus. A liderança era dividida entre negros e brancos, homens e
mulheres. Um artigo do jornal A Fé Apostólica, fundado por Seymour, dizia no
número de novembro de 1906: “Nenhum instrumento que Deus possa usar é rejeitado
por motivo de cor, vestuário ou falta de cultura”. Outro artigo informava que
em um culto de comunhão que durou toda a noite havia pessoas de mais de vinte
nacionalidades. Uma frase comum na época dizia que “a linha divisória da cor
havia sido lavada pelo sangue”. Diante da longa e terrível história de racismo
e segregação nos Estados Unidos, esse fato só podia deixar encantados os
participantes e observadores do avivamento, que viam nisso mais uma prova de
que o movimento vinha de Deus.
Todavia, desde o início também houve uma série de problemas: médiuns
espíritas tentavam realizar sessões durante os cultos; enquanto muitas pessoas
sentiam a presença de Deus, outras ficavam no fundo do salão discutindo e
condenando; havia muitas críticas de jornais e de líderes eclesiásticos. Houve
também algumas crises internas: choques de personalidade, fanatismo, divergências
doutrinárias e separação racial. Com o passar do tempo, Seymour e outros
líderes negros acabaram assumindo o controle da missão, excluindo os brancos e
os hispanos. O próprio Parham visitou o local em outubro de 1906 e ficou
chocado com certas manifestações que presenciou.[15]
Após cerca de três anos de reuniões diárias de alta intensidade, o
avivamento entrou em declínio. Depois da morte de Seymour em 1922 e de sua
esposa Jennie em 1936, a missão fechou as portas e o edifício foi demolido. Todavia,
um novo capítulo na história da igreja havia começado. Há alguns anos foi
colocada na praça anexa a esse local histórico uma placa com os seguintes
dizeres:
Missão da Rua Azusa – Esta placa comemora o local da Missão da Rua Azusa,
que estava localizada na Rua Azusa 312. Formalmente conhecida como Missão da Fé
Apostólica, ela serviu como nascedouro do Movimento Pentecostal internacional
de 1906 a 1931. O pastor William J. Seymour superintendeu o “Avivamento da Rua
Azusa”. Ele pregou uma mensagem de salvação, santidade e poder, recebeu
visitantes de todo o mundo, transformou a congregação em um centro
multicultural de adoração e comissionou pastores, evangelistas e missionários
para levaram ao mundo a mensagem do Pentecoste (Atos 2.1-41). Hoje os membros
da Movimento Pentecostal/Carismático totalizam meio bilhão ao redor do mundo.
Fevereiro de 1999 – Comissão Memorial da Rua Azusa.[16]
Portanto, o movimento pentecostal tem dois fundadores: Charles Parham e
William Seymour. Parham foi o primeiro a fazer a afirmação fundamental de que o
falar em línguas era a evidência visível e bíblica do batismo com o Espírito
Santo. A importância de Seymour, o discípulo de Parham, reside no fato de que
sob sua liderança, através do Avivamento da Rua Azusa, o pentecostalismo se
tornou um fenômeno internacional e mundial a partir de 1906. Nos Estados
Unidos, as primeiras denominações pentecostais foram, entre outras: a Igreja de
Deus de Camp Creek (Carolina do Norte), a Igreja de Deus de Cleveland
(Tennessee), a Igreja da Fé Apostólica (Portland, Oregon) e as Assembléias de
Deus (Hot Springs, Arkansas). Um líder extremamente importante foi William H.
Durham, de Chicago, cidade que teve grande influência na internacionalização do
movimento.
3.2 Controvérsias
Desde o início o movimento pentecostal foi muito diversificado,
apresentando uma grande variedade de manifestações e ênfases. Isso não é de
admirar, visto que o pentecostalismo, por sua própria natureza, podia, a partir
das premissas básicas, assumir um grande número de configurações, motivadas
principalmente pelos muitos líderes independentes que iam surgindo. Portanto,
quase desde o início uma série de controvérsias abalaram o movimento:[17]
3.2.1 A “obra consumada”
Essa controvérsia foi a primeira ruptura na família pentecostal. Segundo a
visão tradicional do movimento holiness e dos primeiros pentecostais,
inspirados por João Wesley, existia uma experiência instantânea de “inteira
santificação” ou “perfeição cristã”, separada da experiência da conversão. Era
chamada a “segunda bênção”, sendo considerada uma preparação necessária para
uma terceira experiência, o batismo com o Espírito Santo (a nova experiência
pentecostal). Em 1910, William H. Durham, pastor da Missão da Avenida Norte, em
Chicago, questionou essas idéias, insistindo no que ele denominou a “obra
consumada no Calvário”, ou seja, o fato de que a obra de Cristo na cruz era
suficiente tanto para a salvação quanto para a santificação. Os pentecostais da
obra consumada passaram a entender a santificação como um processo gradual. Em
1915, essa já era a posição preferida de aproximadamente metade dos
pentecostais americanos, e hoje da maioria deles.
3.2.2 A questão racial
Como foi visto, o Avivamento da Rua Azusa uniu negros e brancos,
tornando-se, nos seus primeiros anos, um modelo de cooperação inter-racial. Em
1910, destacados líderes pentecostais brancos e negros se esforçavam para
tornar essa visão inter-racial um elemento básico do pentecostalismo. Com o
tempo, muitos líderes brancos acharam difícil manter esse impulso inicial. O
racismo e as leis de segregação racial do sul dos Estados Unidos (leis Jim
Crow) prevaleceram. Ficou difícil realizar convenções multi-raciais, pois havia
leis proibindo reuniões desse tipo e acomodações em hotéis para ambas as raças.
Por causa dos obstáculos culturais, sociais e institucionais, muitas igrejas
negras começaram a se retirar de denominações multi-raciais já em 1908. Da
mesma maneira, uma associação branca ligada à Igreja de Deus em Cristo formou
as Assembléias de Deus como uma denominação predominantemente branca em 1914
(Hot Springs, Arkansas). Em 1924, a maior parte das igrejas brancas de outra
denominação mista, as Assembléias Pentecostais do Mundo, se retiraram para
criar uma denominação branca, que mais tarde veio a ter o nome de Igreja
Pentecostal Unida (Missouri). Os pentecostais hispanos, muito numerosos, também
se organizaram separadamente. Desde o final dos anos 60, as denominações
pentecostais têm tentado sanar algumas dessas divisões.
3.2.3 O movimento da unicidade
Em 1913, numa concentração na Califórnia, o pastor canadense Robert Edward
McAlister começou a insistir no fato de que o Novo Testamento mostra os
apóstolos batizando somente “em nome de Jesus”.[18] Essa prática começou a ser
adotada por muitos pentecostais através do país. No início parecia apenas uma
nova fórmula para o batismo, mas com o tempo verificou-se que era uma rejeição
da doutrina da Trindade com sua tríplice distinção de pessoas, constituindo uma
reedição do monarquianismo modalista ou sabelianiamo dos primeiros séculos da
história da igreja. Em 1916, as Assembléias de Deus condenaram formalmente as
posições do movimento de unicidade ou “Jesus somente”. Seus adeptos tiveram de
desligar-se e formaram as suas próprias denominações – as Assembléias
Pentecostais do Mundo 1919) e mais tarde a Igreja Pentecostal Unida (1945).
Hoje esse grupo representa uma fração muito pequena do pentecostalismo mundial.
3.2.4 Pacifismo
A maior parte dos primeiros pentecostais eram resolutos pacifistas, por
duas razões: obediência a preceitos bíblicos como “Amai os vossos inimigos” e
“Não matarás”, e a crença pré-milenista no fim do mundo. Se o final dos tempos
estava próximo, os cristãos deviam concentrar todas as suas energias na
evangelização do mundo, e não em guerras. Portanto, a maioria das igrejas
pentecostais se posicionou contra o envolvimento dos Estados Unidos na I Guerra
Mundial e alguns líderes chegaram a ser presos. Na época da II Guerra Mundial,
eles já haviam assumido uma posição cultural mais semelhante aos evangélicos,
aprovando a legitimidade de envolvimento americano na guerra. Por fim, na
Guerra do Vietnã muitos já haviam se tornado antipacifistas.
3.2.5 Manipuladores de serpentes
Num domingo de 1910, George W. Hensley, um pregador do Tennessee, falou
sobre o texto de Marcos 16.17-18. Ao concluir o sermão, ele tirou uma grande
cascavel de dentro de uma caixa e segurou-a com as mãos por vários minutos. A seguir,
ordenou que sua congregação fizesse o mesmo. Sua fama se espalhou pela região e
ele foi ordenado na Igreja de Deus. Hensley teve uma vida cheia de altos e
baixos, inclusive com quatro casamentos, mas continuou a manipular serpentes
até o fim, sendo mordido várias vezes. Essa prática acabou proibida por lei e
por isso esse líder e seus seguidores foram presos muitas vezes. No dia 24 de
julho de 1955, Hensley foi picado mais uma vez. Como nas outras ocasiões,
recusou-se a receber tratamento médico e na manhã seguinte estava morto, aos 75
anos de idade. Hoje cerca de 2.500 pentecostais americanos praticam o manuseio
de serpentes em igrejas autônomas muito conservadoras.
3.2.6 Os latinos
Os latinos, principalmente mexicanos e chicanos (americanos de origem
mexicana), estiveram presentes no Avivamento da Rua Azusa desde o início. Por
razões não inteiramente claras, Seymour os expulsou da missão em 1909. Esse
conflito deu origem ao movimento pentecostal latino, que se difundiu através
dos Estados Unidos, México e Porto Rico. Em 1912, eles criaram as suas próprias
igrejas autônomas e independentes na Califórnia, Texas e Havaí. Um dos líderes
iniciais mais influentes foi o evangelista Francisco Olazábal, apelidado “El
Azteca”. Até recentemente os latinos eram conhecidos como os “pentecostais
silenciosos”, porque sua história raramente era contada. Esse segmento tem
desfeito o estereótipo de que ser latino é o mesmo que ser católico romano. Em
1998, cerca de um milhão de latinos freqüentavam 10.000 igrejas e grupos de
oração em 40 tradições pentecostais e carismáticas nos Estados Unidos e em
Porto Rico, sem contar o número muito maior de pentecostais existentes em
muitos países latino-americanos.
3.3 Mulheres
Outra característica do movimento pentecostal nos seus primórdios foi a
grande participação e visibilidade dada às mulheres. Dois exemplos notáveis são
Maria Beulah Woodworth-Etter e Aimee Semple McPherson, esta última a fundadora
da Igreja do Evangelho Quadrangular.
3.3.1 Maria Woodworth-Etter (1844-1924)
Essa famosa pregadora teve uma vida difícil até os 35 anos. Cinco de seus
seis filhos morreram e o seu primeiro marido foi surpreendido em adultério. Em
aflição, ela uniu-se aos quacres e tornou-se uma pregadora avivalista. Nos seus
cultos, as pessoas clamavam e choravam em alta voz; muitos participantes
entravam em transe ou tinham visões que podiam durar várias horas. Em 1912, aos
68 anos, ela abraçou o movimento pentecostal mais amplo ao pregar por seis
meses em Dallas. Tornou-se uma das evangelistas pentecostais mais conhecidas do
início do século e o seu ministério possibilitou o surgimento posterior de
outras mulheres pregadoras e ministradoras de curas.[19]
3.3.2 Aimee Semple McPherson (1890-1944)
Originalmente de sobrenome Kennedy, Aimee nasceu em Ontário, no Canadá.
Seu pai era metodista e a mãe, do Exército de Salvação. Quando adolescente,
conheceu o pentecostalismo através das pregações de Robert Semple, com quem se
casou aos 17 anos. Ele morreu dois anos depois, em Hong Kong, quando o casal
iniciava uma carreira missionária. Voltando para casa, ela contraiu matrimônio
com o homem de negócios Harold McPherson e eles se tornaram evangelistas
itinerantes (depois que ela quase morreu de apendicite em 1913). Em 1917, Aimee
passou a publicar a revista mensal The Bridal Call (“O chamado do noivo”) e
começou a atrair a atenção da imprensa. Depois que o marido pediu divórcio, ela
aceitou em 1918 um convite para pregar em Los Angeles. Dedicou as suas energias
à recuperação do “cristianismo da Bíblia”, usando como tema Hebreus 13.8. Em
1919, iniciou uma série de conferências que a tornaram famosa. Dentro de um
ano, os maiores auditórios dos Estados Unidos não comportavam as multidões que
queriam ouvi-la. As orações pelos enfermos tornaram-se marcas de suas
campanhas. Em rápida sucessão, ela foi à Austrália, a primeira de suas viagens
ao exterior (1922), consagrou o Templo Ângelus (1923), fundou uma estação de
rádio (1924) e sua escola bíblica mudou-se para uma sede própria (1925).
“Sister”, como era chamada, também iniciou projetos na área social em diversas
cidades.
Em maio de 1926 começaram os problemas. Aimee alegou que foi seqüestrada e
que teria conseguido escapar, algo que nunca foi devidamente esclarecido. Ela
enfrentou sérios problemas de saúde na maior parte da década de 1930. Um
desastroso terceiro casamento durou menos de dois anos. Sua realização pública
mais notável nos anos 30 foi um programa social no Templo Ângelus que
distribuiu alimentos, roupas e outros donativos a muitas famílias carentes.
Durante a Depressão, o refeitório ofereceu 80.000 refeições só nos dois
primeiros meses. Sua contribuição mais importante e duradoura foi a criação da
Igreja Internacional do Evangelho Quadrangular (1927), cujo nome aponta para
Cristo como aquele que salva, cura, batiza como Espírito Santo e virá outra
vez.[20] Donald Dayton argumenta que essas quatro ênfases em conjunto
caracterizam e distinguem o movimento pentecostal como um todo.[21] É aquilo
que se denomina o “evangelho pleno”.
4. O pentecostalismo no Brasil
A partir de Los Angeles, e especialmente de Chicago, o pentecostalismo
rapidamente se irradiou para vários outros países. O movimento entrou cedo na
América Latina, primeiro no Chile (1909) e logo em seguida no Brasil (1910). No
início o crescimento nesses e em outros países foi lento, mas se intensificou a
partir da década de 50. Desde os anos 70, o pentecostalismo também se expandiu
na América Central, especialmente na Guatemala e El Salvador, onde representa respectivamente
30% e 20% da população. No Chile, cerca de
80% dos protestantes são pentecostais. Nesse país, o pentecostalismo
marcou a nacionalização do protestantismo. São muitas as razões da expansão
pentecostal na América Latina: as vicissitudes históricas da obra evangelística
e pastoral católica, o limitado trabalho das denominações protestantes, o
misticismo das culturas ibero-americanas, os graves problemas econômicos,
políticos e sociais.
A primeira manifestação de entusiasmo religioso no protestantismo
brasileiro é atribuída por Émile Léonard ao movimento liderado por Miguel
Vieira Ferreira (1837-1895).[22] Esse engenheiro, presbítero e pregador leigo
da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, membro de uma família aristocrática
de São Luís do Maranhão, acreditava que Deus ainda se revelava diretamente às
pessoas, como nos tempos bíblicos. Dotado de um temperamento místico, certa vez
teve uma espécie de transe, ficando totalmente imóvel por longo período de
tempo. Disciplinado pela igreja por insistir nas suas idéias, o Dr. Miguel
retirou-se com um grupo de crentes, a maior parte parentes seus, e criou a
Igreja Evangélica Brasileira (1879), que subsiste até hoje. Todavia, esse grupo
é diferente em vários aspectos do movimento pentecostal surgido algumas décadas
mais tarde.[23]
O sociólogo Paul Freston fala sobre “três ondas” ou fases de implantação
do pentecostalismo no Brasil.[24] A primeira onda, ainda nos primeiros anos do
movimento pentecostal norte-americano, trouxe para o país duas igrejas: a
Congregação Cristã no Brasil (1910) e as Assembléias de Deus (1911). Essas
igrejas dominaram amplamente o campo pentecostal durante quarenta anos. A
Assembléia de Deus foi a que mais se expandiu, tanto numérica quanto
geograficamente. A Congregação Cristã, após um período em que ficou limitada à
comunidade italiana, sentiu a necessidade de assegurar sua sobrevivência por
meio do trabalho entre os brasileiros. É interessante o fato de que, quando
chegaram os primeiros pentecostais, todas as denominações históricas já haviam
se implantado no país: anglicanos, luteranos, congregacionais, presbiterianos,
metodistas, batistas e episcopais. Todavia, o seu crescimento havia sido
modesto. Em 1931, fazendo um levantamento sobre o protestantismo nacional,
Erasmo Braga ironicamente dedicou apenas umas poucas linhas à Assembléia de
Deus e nem se referiu à Congregação Cristã no Brasil.[25]
A segunda onda pentecostal ocorreu na década de 50 e início dos anos 60,
quando houve uma fragmentação do campo pentecostal e surgiram, entre muitos
outros, três grandes grupos ainda ligados ao pentecostalismo clássico: Igreja
do Evangelho Quadrangular (1951), Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para
Cristo (1955) e Igreja Pentecostal Deus é Amor (1962), todas voltadas de modo
especial para a cura divina. Essa segunda onda coincidiu com o aumento do
processo de urbanização do país e o crescimento acelerado das grandes cidades.
Freston argumenta que o estopim dessa nova fase foi a chegada da Igreja
Quadrangular com os seus métodos arrojados, forjados no berço dos modernos
meios de comunicação de massa, a Califórnia.[26] Esse período revela uma
tendência digna de nota – a crescente nacionalização do pentecostalismo
brasileiro. Enquanto que a Igreja Quadrangular ainda veio dos Estados Unidos,
as outras duas surgidas na mesma época tiveram raízes integralmente
brasileiras.
A terceira onda histórica do pentecostalismo brasileiro começou no final
dos anos 70 e ganhou força na década de 80, com o surgimento das igrejas
denominadas “neopentecostais”, com sua forte ênfase na teologia da
prosperidade. Sua representante máxima é a Igreja Universal do Reino de Deus
(1977), mas existem outros grupos significativos como a Igreja Internacional da
Graça de Deus (1980), Igreja Renascer em Cristo, Comunidade Sara Nossa Terra,
Igreja Paz e Vida, Comunidades Evangélicas e muitas outras. Assim como a ênfase
da primeira onda foi o batismo com o Espírito Santo e o conseqüente falar em
línguas, a da segunda onda foi a cura e a da terceira, o exorcismo e mensagem
da prosperidade. Uma importante precursora dos grupos neopentecostais foi a
Igreja de Nova Vida, fundada pelo canadense “bispo” Robert McAllister, que
rompeu com a Assembléia de Deus em 1960. Essa igreja foi pioneira de um
pentecostalismo de classe média, menos legalista, e investiu muito na mídia.
Foi também a primeira igreja pentecostal a adotar o episcopado no Brasil. Sua
maior contribuição foi o treinamento de futuros líderes como Edir Macedo e seu
cunhado Romildo R. Soares.[27]
Outros grupos pentecostais e neopentecostais brasileiros resultaram da
chamada “renovação carismática”. Esse movimento surgiu nos Estados Unidos no
início dos anos 60, com a ocorrência de fenômenos pentecostais nas igrejas
protestantes históricas e também na Igreja Católica Romana.[28] No Brasil, a
“renovação” produziu divisões em quase todas as denominações mais antigas, com
o surgimento de grupos como a Igreja Batista Nacional, a Igreja Metodista
Wesleyana e a Igreja Presbiteriana Renovada. Essa adoção de crenças e práticas
carismáticas, principalmente na área do culto, continua afetando em maior ou
menor grau as denominações tradicionais até hoje. A esta altura, é oportuno
considerar alguns representantes significativos do pentecostalismo brasileiro.
4.1 Congregação Cristã no Brasil
As duas igrejas pioneiras do pentecostalismo brasileiro tiveram sua origem
em Chicago, através do ministério de William H. Durham (1873-1912), que fundou
em 1907 a Missão da Avenida Norte (North Avenue Mission). Um dos seus
discípulos foi o italiano Luigi Francescon (1866-1964), que havia emigrado para
os Estados Unidos em 1890. Em Chicago, ele se converteu ao evangelho e foi um
dos fundadores da Igreja Presbiteriana Italiana daquela cidade. Em 1903, foi
batizado por imersão e passou a reunir-se com um grupo holiness, até descobrir
a mensagem pentecostal na igreja do pastor Durham. Foi batizado com o Espírito
Santo em 1907 e recebeu uma profecia de Durham para que levasse a mensagem
pentecostal aos seus patrícios. Em 1909 ele e Giacomo Lombardi foram a Buenos
Aires, onde abriram uma igreja. No início do ano seguinte, Francescon visitou
São Paulo e a pequena Santo Antônio da Platina, no Paraná. Numa segunda visita,
em junho de 1910, ele criou a Congregação Cristã, que resultou em parte de um
cisma na Igreja Presbiteriana do Brás, constituída em boa parte de italianos. O
fundador nunca chegou a residir no Brasil, mas fez onze visitas entre 1910 e
1948, totalizando uma estada de quase dez anos.
Em 1930, a Congregação Cristã tinha sete membros para cada três da
Assembléia de Deus; todavia, em fins dos anos 40 foi ultrapassada pela sua
rival. No ano 2000, de acordo com o censo oficial, ela estava com pouco menos
de um terço dos membros da Assembléia de Deus, ou seja, cerca de 2,8 milhões de
adeptos. A Congregação Cristã tem a maior parte dos seus templos em São Paulo e
em cidades do interior de outros estados. Entre as suas peculiaridades está a
rejeição dos modernos métodos de divulgação, restringindo a pregação da sua
mensagem aos locais de culto. Possui fortes elementos sectários, não se
considerando uma igreja protestante e não mantendo ligações com outros grupos.
Seu ethos caracteriza-se por um rígido dualismo igreja-mundo e
espírito-matéria, e, no entanto, não pratica o legalismo de outros pentecostais.
Destaca-se pelo “iluminismo” religioso, apelando para revelações diretas de
Deus no que diz respeito às mensagens nos cultos e a decisões tomadas pela
liderança. Suas reuniões, bastante ordeiras em comparação com as de outros
grupos pentecostais, dão forte ênfase aos “testemunhos”. A igreja pratica uma
forte cultura de ajuda mútua, denominada “obra de piedade”. No plano
administrativo, rejeita o excesso de organização, tem uma burocracia mínima, e
não conta com pastores, e sim com anciãos não-remunerados. A liderança é
baseada na antiguidade mais do que no carisma ou competência. Seus líderes são
praticamente anônimos e essa ausência de personalismo resulta numa tendência
mínima para cismas e ambições políticas. A homogeneidade interna do grupo é
fortalecida pelo constante contato entre os crentes de diferentes cidades e por
uma convenção anual realizada no Brás, na Semana Santa. Com as suas
características inusitadas, a Congregação Cristã no Brasil exemplifica o
dinamismo e a diversidade do movimento pentecostal.[29]
4.2 Assembléia de Deus
Essa igreja, que veio a ser tornar a maior denominação pentecostal e
evangélica do Brasil, bem como uma das maiores do mundo, também teve as suas
raízes em Chicago, a cidade norte-americana onde o pentecostalismo mais cresceu
nos primeiros tempos e na qual 75% da população era constituída de imigrantes
ou filhos de imigrantes. Entre estes estavam dois suecos de origem batista:
Gunnar Vingren (1879-1933) e Daniel Berg (1885-1963). Vingren, filho de um
jardineiro, foi para os Estados Unidos em 1903 e estudou no seminário da igreja
batista sueca em Chicago. Em seguida, pastoreou algumas igrejas e abraçou o
pentecostalismo, época em que conheceu o colega Daniel Berg. Este era filho de
um líder batista e também havia emigrado para os Estados Unidos. Retornando ao
seu país em 1908, descobriu que um amigo de infância, Levi Pethrus, havia se
tornado pentecostal. Ele seria posteriormente o líder do pentecostalismo sueco.
Influenciado por Pethrus, Berg abraçou a fé pentecostal quanto retornava para
os Estados Unidos em 1909. Conhecendo Vingren, os dois se uniram pelo ideal
missionário. Enquanto oravam com um patrício, este profetizou que deveriam ir
para um lugar chamado Pará.[30]
Os dois obreiros fixaram-se em 1911 em Belém do Pará, onde passaram a
freqüentar a igreja batista, cujo pastor, Erik Nilsson ou Eurico Nelson, também
era sueco. Alguns meses depois, a mensagem pentecostal de Vingren e Berg
produziu uma divisão na igreja, surgindo assim o primeiro grupo da nova
denominação, que inicialmente foi chamado “Missão de Fé Apostólica”, um dos
nomes dos primeiros grupos pentecostais dos Estados Unidos. Só alguns anos mais
tarde foi adotado o nome Assembléia de Deus. A partir de 1914, outros
missionários suecos começaram a chegar para auxiliar os pioneiros. O auge da presença
sueca na Assembléia de Deus ocorreu nos anos 30 e praticamente cessou após
1950. O ano de 1930 foi muito significativo, porque marcou a nacionalização do
trabalho. Na primeira Convenção Geral, realizada em Natal, com a presença de 11
suecos e 23 líderes brasileiros, a igreja adquiriu autonomia em relação à
missão sueca, que lhe transferiu todas as propriedades. Houve também a virtual
transferência da sede nacional de Belém para o Rio de Janeiro. Mais tarde
surgiu uma ligação mais estreita com os Estados Unidos, cujos missionários têm
exercido influência na área da educação teológica.
Analisando essa trajetória, Paul Freston observa que “os missionários
suecos, que tanta influência tiveram nos primeiros quarenta anos da Assembléia
de Deus no Brasil, vieram de um país religiosa, social e culturalmente
homogêneo, no qual eram marginalizados”.[31] Como membros de uma minoria
desprivilegiada, eles tinham poucos recursos financeiros e rejeitavam a ênfase
no aprendizado formal, fatores esses que influenciaram a igreja brasileira.
Assim, as Assembléias de Deus, bem como outros grupos pentecostais pioneiros,
não estabeleceram as relações de dependência que caracterizaram as missões
históricas. Nos primeiros quinze anos, a expansão da igreja limitou-se ao norte
e nordeste. Todavia, na época da nacionalização, em 1930, já estava presente em
vinte estados, contando com cerca de 40.000 congregados.
Quanto às peculiaridades da igreja, Freston aponta para o seu sistema de
governo “oligárquico e caudilhesco”, que seria fruto da influência cultural
nordestina.[32] Exemplo disso são os diferentes “ministérios”, nem sempre
amistosos entre si, e a grande autoridade exercida pelo “pastor presidente”,
verdadeiro bispo de uma cidade ou região, sendo essa posição geralmente atingida
após uma lenta ascensão. Nas últimas décadas têm ocorrido crises resultantes
desse modelo de liderança, do fenômeno da ascensão social dos adeptos e da
concorrência com novos grupos pentecostais. A maior crise enfrentada pela
igreja foi o cisma que deu origem à Convenção Nacional das Assembléias de Deus
de Madureira. Esse ministério havia sido fundado pelo gaúcho Paulo Macalão,
filho de um general, que entrou em conflito com os missionários suecos,
críticos do seu rigor legalista. Consagrado pastor por Levi Pethrus em 1930,
ele se tornou independente e passou a abrir trabalhos em vários estados. As
tensões crescentes após sua morte (1982) levaram à exclusão de Madureira pela
Convenção Geral (1989), que assim deixou de representar cerca de um terço da Assembléia
de Deus no Brasil.
Ao contrário da Congregação Cristã, que não tem literatura própria, a
Assembléia de Deus publica desde 1930 um periódico oficial, Mensageiro da Paz,
e possui uma editora de grande expressão. A igreja enfrenta forte tensão entre
manter a tradição conservadora e populista e aceitar novos valores como a
ênfase no aprimoramento intelectual. Freston destaca que a formação cultural
ultrapassada faz com que os líderes “percam terreno para grupos pentecostais
mais novos, com menos tradições arraigadas para dificultar sua adaptação à
moderna cultura urbana brasileira”.[33] Ainda assim, a Assembléia de Deus é um
fenômeno impressionante, com os seus mais de 8 milhões de afiliados (quase
metade de todos os pentecostais brasileiros), muito mais numerosos que os da
congênere americana, com 2 milhões.[34] Com o passar do tempo, essa igreja vem
se tornando mais parecida com as outras denominações evangélicas, revelando
maior sobriedade no seu culto e uma preocupação crescente com a preparação intelectual
e teológica dos seus obreiros.
4.3 Outras igrejas
Alguns outros grupos expressivos no cenário religioso brasileiro, ainda
dentro do pentecostalismo clássico, são os seguintes:[35]
4.3.1 Igreja do Evangelho Quadrangular
Fundada nos Estados Unidos em 1927 por Aimee Semple McPherson, a Igreja
Quadrangular chegou ao Brasil por meio do missionário Harold Williams, um
ex-ator de filmes de faroeste, que implantou a primeira igreja em São João da
Boa Vista (SP), em novembro de 1951. Em 1953 teve início a Cruzada Nacional de
Evangelização, sendo Raymond Boatright o principal evangelista. Desde então
essa igreja tem crescido constantemente, sendo uma de suas peculiaridades a
forte ênfase dada ao ministério feminino. De todas as grandes igrejas
pentecostais brasileiras (1,3 milhão de membros segundo o Censo 2000), esta é a
única que pode ser considerada uma filial da congênere norte-americana. Todas
as demais surgiram no próprio Brasil, ainda que algumas delas tenham sido
iniciadas por fundadores estrangeiros.
4.3.2 Igreja O Brasil Para Cristo
Um dos primeiros pastores da Igreja Quadrangular brasileira foi Manoel de
Mello, um ex-evangelista da Assembléia de Deus. Em 1955, ele separou-se da
Cruzada Nacional de Evangelização e organizou a campanha “O Brasil Para
Cristo”, da qual surgiu a igreja com o mesmo nome. Manoel de Mello surpreendeu
o mundo evangélico em 1969 quando filiou sua igreja ao Conselho Mundial de
Igrejas (CMI), filiação essa que se estendeu até 1986. Em 1979 a Igreja
Evangélica Pentecostal O Brasil Para Cristo inaugurou o seu enorme templo no
bairro da Água Branca, em São Paulo, sendo orador oficial Philip Potter, o
secretário-geral do CMI. Curiosamente, entre os presentes estava D. Paulo
Evaristo Arns, o cardeal arcebispo de São Paulo.
4.3.3 Igreja Deus é Amor
Essa igreja foi fundada por David Miranda, nascido em 1936, filho de um
agricultor do Paraná. Vindo para São Paulo, ele se converteu numa pequena
igreja pentecostal e em 1962 iniciou sua própria igreja na Vila Maria. Pouco
depois a igreja transferiu-se para o centro da cidade, sendo em 1979 adquirida
a “sede mundial” da Baixada do Glicério, onde há poucos anos foi construído um
dos maiores templos evangélicos do Brasil. A Igreja Deus é Amor até hoje não
utiliza a televisão, mas é proprietária de uma rede de emissoras de rádio e
transmite os seus programas para toda a América Latina. Destaca-se como a mais
rígida e legalista de todas as igrejas pentecostais. Sua direção continua
firmemente nas mãos do missionário fundador.
5. O fenômeno neopentecostal
O acontecimento mais marcante das últimas décadas no âmbito religioso do
Brasil foi o surgimento do neopentecostalismo, notadamente sua expressão mais
espetacular, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Sendo um fenômeno
recente, essa manifestação religiosa ainda está sendo objeto de uma
identificação mais precisa, inclusive no aspecto terminológico. Alguns autores
falam em “pentecostalismo autônomo”.[36] Já o professor Antonio G. Mendonça
utiliza a designação “pentecostalismo de cura divina”, o que pode ser
problemático, pois faria o neopentecostalismo retrocedor aos anos 50, com o
início da segunda onda pentecostal.[37] Seja qual for a designação, o fato é
que essa manifestação representa, ao lado de alguma continuidade, profundas
rupturas com o pentecostalismo clássico e muito mais ainda com o protestantismo
histórico.
Esse fenômeno ainda em evolução tem como proposta religiosa básica o
trinômio cura-exorcismo-prosperidade. Diante das realidades de sofrimento e
alienação que caracterizam a sociedade moderna, principalmente nos grandes
centros urbanos, essas igrejas oferecem espaços de solidariedade e acolhimento,
gerando um forte senso de dignidade entre os seus participantes. Por outro
lado, elas revelam uma clara tendência para práticas sincréticas e mágicas,
tais como a utilização crescente de objetos e rituais como mediação do sagrado,
a adoção do vocabulário e práticas da religiosidade popular brasileira e o uso
da Bíblia apenas como um instrumento para a solução de problemas. Mendonça faz
a seguinte avaliação contundente:
... essas igrejas não constituem comunidades de crentes comprometidos com
a koinonia cristã. Estão sempre cheias, mas de clientes que buscam solução
mágica para os problemas do cotidiano e que
estão sempre em trânsito, na maioria das vezes mantendo sua identidade
religiosa tradicional. Não são, portanto, igrejas, mas clientela de bens de
religião obtidos magicamente.[38]
José Bittencourt Filho tem uma perspectiva mais otimista, que ainda está
para ser demonstrada:
O crescimento numérico do [Pentecostalismo Autônomo] e sua extraordinária
capacidade de mobilização demonstra que a proposta oferecida está em sintonia
com as demandas espirituais da população brasileira de todas as camadas
sociais. No futuro, o carisma deverá rotinizar-se, e os remanescentes serão
talvez poucas denominações mais próximas da tradição evangélica do que na
atualidade.[39]
Esse novo pentecostalismo se adapta muito bem à moderna cultura urbana
influenciada pela televisão e pela ética do capitalismo de consumo. Duas
expressões emblemáticas são a Igreja Universal do Reino e a Igreja Renascer em
Cristo.
5.1 Igreja Universal do Reino de Deus
A IURD foi fundada pelo pastor Edir Macedo, nascido em 1944, que possui
uma biografia interessante e reveladora. Filho de um comerciante fluminense,
ele trabalhou por dezesseis anos na Loteria do Estado do Rio de Janeiro,
período no qual subiu de simples contínuo até um cargo administrativo. De
origem católica, ingressou quando adolescente na Igreja de Nova Vida,
deixando-a para fundar sua própria, inicialmente denominada Igreja da Bênção.
Em 1977, ele deixou o emprego público para dedicar-se integralmente ao trabalho
religioso. Nesse mesmo ano surgiu o nome IURD e o primeiro programa de rádio.
Em 1980, houve um conflito de liderança entre Macedo e seu cunhado Romildo
Soares, o que levou este último a criar a Igreja Internacional da Graça de
Deus. Há anos Soares se destaca como o líder religioso que ocupa maior espaço
na televisão brasileira.
Macedo residiu nos Estados Unidos de 1986 a 1989. Quando voltou para o
Brasil, transferiu a sede da igreja para São Paulo e adquiriu a Rede Record de
Televisão. À medida que construía um império econômico e de comunicações, a
igreja também se preocupou em buscar sustentação política, elegendo em 1990
três deputados federais, e outros mais em anos posteriores. Em 1992, Macedo
esteve preso por doze dias sob a acusação de estelionato, charlatanismo e
curandeirismo. Um acontecimento que deu grande publicidade à igreja foi o
episódio do “chute na santa”, quando, em um programa de televisão transmitido
em 12 de outubro de 1995, o bispo Sérgio von Helde referiu-se de modo desairoso
a Maria, dando alguns chutes numa imagem da mesma. Apesar dos percalços, a IURD
tem crescido enormemente, sendo, graças à sua presença maciça na mídia e aos
seus grandes templos nas principais ruas e avenidas de muitas cidades, a mais
visível das igrejas evangélicas brasileiras. Segundo o último censo geral,
tinha no ano 2000 pouco mais de 2 milhões de adeptos no Brasil, além de muitos
templos no exterior.
Freston entende que “a IURD é uma atualização das possibilidades
teológicas, litúrgicas, éticas e estéticas do pentecostalismo”.[40] A ênfase
principal da sua mensagem não é o batismo no Espírito Santo e a glossolalia,
mas a teologia da prosperidade (na saúde, nas finanças e no amor), como fica
explícito em seu slogan “Pare de sofrer; venha para a IURD”. Em conexão com
isso, também pratica o exorcismo de modo bastante explícito. Essa igreja rompe
com a pobreza simbólica do protestantismo brasileiro, fazendo amplo uso da
visão, tato e gestos, bem ao sabor da religiosidade tradicional do país. Embora
seja o líder inconteste, Edir Macedo tem um estilo pouco personalista. A
organização da igreja facilita o controle centralizado e a constante inovação
metodológica. As atividades são governadas por um marketing agressivo e
estratégias ousadas. Ao falar sobre a ética dessa igreja, Freston faz uma
comparação interessante: “A ética da IURD pode ser contrastada com a da
[Assembléia de Deus]. Esta representa a ética tradicional do capitalismo
primitivo, uma luta longa e árdua para alcançar a modesta respeitabilidade
pequeno-burquesa. A Universal, por outro lado, encarna uma versão religiosa da
ética yuppie, o enriquecimento súbito através de jogadas audaciosas”.[41]
5.2 Igreja Apostólica Renascer em Cristo
A Igreja Renascer foi fundada em 1985 pelo “apóstolo” Estevam Hernandes
Filho e sua esposa, a “bispa” Sônia Haddad Moraes Hernandes. Como outros
líderes pentecostais, Estevam teve uma origem humilde como filho de um
jardineiro de cemitério e começou a trabalhar aos 7 anos, fazendo carretos em
feiras livres. Mais tarde, desiludido com o catolicismo, filiou-se a uma igreja
pentecostal, onde conheceu a futura esposa. Sete anos depois, casaram-se e
decidiram fundar sua própria igreja. À semelhança dos pastores da IURD, o casal
Hernandes tem grande habilidade em conseguir contribuições dos fiéis. Todavia,
ao contrário de Edir Macedo, ostentam com orgulho sinais de riqueza, como
roupas caras, jóias e automóveis importados. O casal é proprietário da Rede
Gospel de Comunicação e por algum tempo procurou assumir o controle da Rede Manchete
de Televisão. A Igreja Renascer exemplifica um pentecostalismo de classe média
e tem forte apelo junto à juventude e a celebridades do esporte e da mídia.
Em pouco mais de vinte anos, essa igreja abriu 1500 templos no Brasil e 20
em outros seis países, sendo a segunda maior denominação neopentecostal do
Brasil. Há vários anos promove a Marcha para Jesus, evento que reuniu 3 milhões
de pessoas em São Paulo no corrente ano. À semelhança da IURD, a igreja tem
investido na área política e elegeu dois deputados federais no último pleito.
Uma séria dificuldade de imagem decorre do fato de que os fundadores não fazem
uma clara distinção entre os bens da igreja, construídos com doações dos
membros, e o seu patrimônio pessoal. O casal responde a um processo em que são
acusados de estelionato contra fiéis e lavagem de dinheiro arrecadado nos
cultos. Por não terem comparecido a uma audiência do processo, sua prisão
preventiva foi decretada pela justiça no final de novembro de 2006.[42]
6. Avaliação e perspectivas
Qualquer abordagem construtiva do pentecostalismo precisa incluir, ao lado
de uma crítica dos seus problemas e distorções, uma consideração honesta de
suas contribuições positivas e das advertências que faz ao protestantismo
histórico. A Igreja Católica Romana tem procurado deixar de lado as acusações
de praxe (movimentos sectários, fanatismo, obscurantismo) para estudar com
seriedade esse movimento que lhe tem subtraído um grande número de fiéis,
fazendo uma necessária autocrítica e buscando aprender as lições da
história.[43] As igrejas protestantes, notadamente aquelas de tradição
reformada, precisam empreender um esforço semelhante.
As vicissitudes do pentecostalismo são bem conhecidas e muitas delas já
foram apontadas neste artigo. Evidentemente elas não devem ser generalizadas,
aplicando-se ora a uns, ora a outros grupos. Esses problemas podem ser
classificados em algumas áreas: (1) Escritura: ênfase excessiva na experiência,
profecias ou revelações, relativizando a importância da Bíblia; interpretação
bíblica literalista ou alegórica, conforme a necessidade, sem atentar para as
boas regras da hermenêutica; a Bíblia é considerada acima de tudo um livro de
promessas de Deus para os crentes; (2) vida espiritual: entendimento da relação
com Deus como uma transação, perdendo-se o senso da salvação como dádiva
imerecida da graça; visão dualista da realidade (bem-mal, Deus-diabo) e
tendência de atribuir todo mal a influências diabólicas, minimizando a
responsabilidade humana; ênfase excessiva na experiência e nas emoções, que
pode levar ao subjetivismo; interesse por modismos e novidades; (3) liderança:
estilo centralizador e personalista; culto à personalidade do líder,
considerado intocável (o “ungido do Senhor”); pequena participação dos fiéis na
esfera decisória e na administração dos recursos financeiros[44]; (4) ética:
atitude triunfalista e ênfase no poder podem minimizar um viver ético; maior
ênfase aos dons do que ao fruto do Espírito; tendência para a alienação quanto
aos problemas da sociedade; atuação questionável na esfera política; (5) culto:
perigo de colocar os adoradores no centro das atenções ao invés de Deus
(antropocentrismo); liturgia condicionada por interesses pragmáticos (atrair e
empolgar os participantes) e preferências culturais, e não pelo ensino da
Escritura.[45] Essas deficiências e outras são muito sérias e as igrejas
históricas devem não só orientar os seus próprios fiéis, mas ajudar os
pentecostais e carismáticos a serem mais bíblicos nessas áreas.
Por outro lado, os pentecostais, carismáticos e renovados oferecem algumas
lições importantes para as igrejas tradicionais ou históricas. O surgimento e
crescente aceitação desses movimentos sugere insatisfação com uma religiosidade
formal e rotineira, bem como o desejo de uma experiência mais profunda com
Deus, de um culto mais alegre e fervoroso, de uma vida cristã mais plena. O
protestantismo histórico, que começou como um movimento revolucionário e
renovador, com o tempo se tornou rígido, tradicionalista e rotineiro. Sua
rejeição da piedade medieval fez com que se perdessem elementos valiosos da
experiência cristã, como o senso de mistério, o deslumbramento diante do Ser
Divino, o rico simbolismo espiritual que apela à mente e aos sentidos. O
pentecostalismo veio resgatar esses elementos que haviam sido esquecidos pela
tradição protestante. Outras contribuições importantes são a insistência na
atualidade da mensagem bíblica (tudo o que a Escritura diz é também para hoje),
a exuberância do louvor, a ênfase na evangelização (grande parte do crescimento
do cristianismo no século 20 resultou do trabalho das igrejas pentecostais), a
preocupação com os pobres e marginalizados (libertação do pecado e dos vícios;
dignidade humana).[46]
Os especialistas têm feito uma série de conjecturas sobre o futuro do
movimento pentecostal.[47] Embora haja diferentes perspectivas, em uma coisa
todos concordam: o pentecostalismo veio para ficar. As igrejas herdeiras da
Reforma, como a presbiteriana, podem adotar diferentes atitudes: tentar ignorar
o movimento pentecostal, como se não fosse relevante; hostilizá-lo, apontando
somente para as distorções teológicas e éticas; ou, preferivelmente, interagir
com ele, aprendendo lições úteis com essa tradição e ao mesmo tempo procurando
influenciá-la, para que se torne mais íntegra e bíblica.[48] Entre as áreas a
serem reconsideradas, podem ser apontadas as seguintes: (a) na esfera do culto:
liturgia mais alegre, edificante e participativa; hinódia contemporânea com
sólido conteúdo bíblico e doutrinário; (b) na esfera das missões: maior ênfase
na evangelização, envolvendo todos os membros; reexame das estratégias
missionárias (por exemplo, em certas igrejas pentecostais o obreiro deve
primeiro plantar uma igreja para então ser consagrado pastor, ao passo que na
IPB o grande número de formandos dos seminários não está se traduzindo em
crescimento para a igreja); (c) no âmbito social: transformação das igrejas em
espaços acolhedores para pessoas de todas as classes e condições; atuação
deliberada e sistemática junto às camadas mais pobres da população,
levando-lhes o evangelho integral. Também existem algumas contribuições que as
igrejas tradicionais podem oferecer aos pentecostais e renovados: seriedade no
estudo e interpretação das Escrituras; valorização da boa teologia e das
doutrinas bíblicas; compromisso com a ética cristã, especialmente quanto à
liderança e finanças; ênfase à santidade tanto quanto ao poder; equilíbrio
entre experiência e Escritura, emoções e intelecto, fervor e reverência;
valorização da herança cristã.( Notas Portal Makenzie).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
PAZ DO SENHOR
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.