Este capítulo contém
parte das últimas palavras proferidas ou escritas pelo apóstolo Paulo. São,
certamente, as últimas que foram preservadas. Foram
escritas a semanas, talvez não mais do que poucos dias antes do seu
martírio. De acordo com antiga tradição fidedigna, Paulo foi decapitado na Via
Ápia. Por trinta anos ininterruptos trabalhara como apóstolo e evangelista
itinerante. Fez, na verdade, o que ele mesmo escreve aqui: combateu o bom
combate, completou a carreira e guardou a fé (v.7). Agora ele aspira
por seu prêmio, "a coroa da justiça", que já lhe
estava reservada no céu (v.8). Estas palavras constituem-se no legado
de Paulo à Igreja. Elas estão impregnadas de uma atmosfera de
grande solenidade. É impossível lê-las sem uma profunda emoção. A primeira
parte do capítulo toma a forma de uma comovente incumbência. "Conjuro-te,
perante Deus", assim começa. O verbo diamartyromai tem
conotações legais e pode significar "testificar sob juramento"
numa corte de justiça, ou "adjurar" uma testemunha a assim
proceder. No Novo Testamento refere-se a qualquer
"elocução solene e enfática". A exortação de Paulo é
endereçada, em primeiro lugar, a Timóteo, seu delegado apostólico e representante
em Éfeso. É aplicada, também, a cada homem chamado a um ministério
evangelístico ou pastoral, ou mesmo a todos os cristãos.
Há três aspectos da
exortação a serem estudados, os quais são: sua natureza (o que Paulo de fato
está comissionando a Timóteo), sua base (os argumentos sobre os
quais Paulo baseia a sua exortação) e uma ilustração pessoal dela, do exemplo
do próprio Paulo em Roma.
1. A natureza
da exortação (v.2)
Prega
a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com
toda a longanimidade e doutrina.
Omitindo o
versículo 1, por um momento, e passando ao versículo 2, encontramos a
essência dessa exortação em três palavras: "prega a palavra".
Observamos imediatamente que a mensagem que Timóteo deve comunicar é chamada de
"palavra", algo que foi proferido por alguém. Mas é a palavra,
a palavra de Deus, que Deus mesmo
proferiu. Paulo não precisa especificar melhor o que ele quer dizer, já que
Timóteo saberá de imediato que se trata do corpo de doutrina, que ouvira de
Paulo, e que o mesmo Paulo lhe comissiona a passar adiante a outros. É
idêntica ao "depósito" do capítulo 1, e neste quarto capítulo é
equivalente à "sã doutrina" (v.3), "à verdade" (v.4) e
"à fé"' (v.7). São as Escrituras do Velho Testamento, inspiradas por
Deus e proveitosas, que Timóteo sabe desde a sua infância, junto com o ensino
do apóstolo, que Timóteo "tem seguido", "aprendido" e de
que tem sido "inteirado" (3: 10-14). O mesmo comissionamento é dado
à Igreja de cada época. Não temos nenhuma liberdade para inventar a nossa
mensagem, mas somente para comunicar "a palavra" proferida por Deus e
agora entregue à Igreja, em sagrada custódia.
Timóteo deve
"pregar" esta palavra; ele deve falar o que Deus falou. Sua
responsabilidade não é somente ouvir essa palavra, crer nela e obedecê-la, nem
somente guardá-la de toda falsidade; nem somente sofrer por ela e permanecer
nela; mas, sim, pregá-la a outros.
São as boas novas de salvação para os pecadores. Assim ele deve proclamá-la
como um arauto em praça pública. Para fazê-la conhecida, deverá levantar a sua
voz para todos, sem temor.
Paulo prossegue
mostrando quatro sinais que deverão caracterizar a proclamação a ser feita por
Timóteo.
a. Uma
proclamação urgente
O verbo ephistëmi, "instar",
significa literalmente "assistir", e assim "estar de
prontidão", "estar disponível". Aqui, contudo, parece ter o
sentido não somente de alerta e zelo mas de insistência e urgência.
"Nunca perca o teu sentido de urgência" (CIN). Numa forma lânguida e
indiferente, certamente não se faz uma boa pregação. Toda boa pregação transmite
um sentido de urgência e de importância do que está sendo pregado. O arauto
cristão sabe que está tratando de assunto de vida ou morte. Anuncia a situação
do pecador sob os olhos de Deus, e a ação salvadora de Deus, através da morte e
ressurreição de Cristo, e o convida ao arrependimento e à fé. Como poderia
tratar tais temas com fria indiferença? "Em tudo o que você fizer",
escreveu RichardBaxter, "deixe transparecer a sua absoluta seriedade.
. . Você não conseguirá quebrantar o coração de ninguém com gracejos, nem
contando histórias agradáveis ao ouvido, nem compondo um discurso pomposo.
Ninguém abandonará as coisas de que mais gosta, mediante uma solicitação sem
profundidade feita por alguém que parece não falar com convicção, ou que pouco
se incomode se a sua solicitação é aceita ou não".
Esta urgente
pregação, Paulo acrescenta, deve continuar "a tempo e fora de
tempo". "Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não."
Tal regra de procedimento não deve ser tomada como desculpa para a falta de
tato com as pessoas, o que muitas vezes tem caracterizado a evangelização, e
que em decorrência tem dado uma má reputação ao evangelho. Não nos é dada a
liberdade de entrarmos sem cerimônia na vida privada de outras pessoas ou lhes
pisarmos grosseiramente nos calos. Não, as ocasiões a que Paulo se refere como
sendo "quer seja oportuno, quer não", aplicam-se não tanto aos
ouvintes como a quem fala. A BLH enfatiza isso: "pregue a mensagem e
insista em anunciá-la, no tempo certo ou não". Assim é o verbo ephistëmi,em
seu sentido alternativo, como é às vezes encontrado nos manuscritos. Assim, o
que temos aqui não é uma base bíblica para a grosseria, mas sim um apelo
bíblico contra a preguiça.
b. Uma
proclamação contextual
O arauto que anuncia
a Palavra deve corrigir, repreender e exortar. Isso sugere que há
três diferentes maneiras de anunciar, pois que a Palavra de Deus é
"útil" para uma variedade de ministérios, como Paulo já disse (3:
16). Ela fala a homens diferentes, em situações diferentes. O pregador deve
lembrar-se disso e ser hábil no uso da Palavra. Ele deve usar "argumentos,
repreensão e apelo", o que vem a ser quase uma classificação de três
abordagens: a intelectual, a moral e a emocional. Porque muitas pessoas
acham-se atormentadas por dúvidas e precisam ser repreendidas; outras, ainda,
são perseguidas pelas dúvidas e precisam ser encorajadas. A Palavra de Deus faz
tudo isso e muito mais. É nosso dever aplicá-la contextualmente.
c. Uma
proclamação paciente
Mesmo devendo instar (esperando
obter das pessoas rápidas decisões em resposta à Palavra), devemos ter
"toda a longanimidade na espera por essa resposta". Nunca devemos nos
valer do uso de técnicas humanas de pressão ou tentar forçar uma
"decisão". A nossa responsabilidade é ser fiel na pregação da
Palavra; os resultados da proclamação são de responsabilidade do Espírito
Santo e, quanto a nós, só nos compete esperar pacientemente por sua obra.
Também devemos ser pacientes em toda a nossa maneira de ser, porque "é
necessário que o servo do Senhor não viva a contender, e, sim, deve ser brando
para com todos, apto para instruir, paciente ; disciplinando com
mansidão os que se opõem" (2: 24-25). Mesmo sendo solene o nosso
comissionamento, e urgente a nossa mensagem, não se justifica uma conduta rude
ou impaciente.
d. Uma
proclamação inteligente
Não devemos só
pregar a palavra, mas também ensiná-la, ou melhor, pregá-la "com toda a
doutrina" (këryxon. . . en pasë... didachè). C.
H. Dodd tornou clara a distinção entre kérygma edidachè, sendo
a primeira a proclamação de Cristo aos descrentes, com um apelo ao
arrependimento; e a segunda, a instrução ética aos convertidos. A distinção é
prática e importante; contudo, como já sugerido no comentário de 1: 1, ela
pode se tornar rígida e estreita. Pelo menos este versículo nos mostra que o
nosso kèrygma deve conter muito dedidachè. Se a
nossa proclamação pretende antes de tudo convencer, repreender ou exortar, ela
deve ser um ministério de doutrina.
O ministério
pastoral cristão é essencialmente um ministério de ensino, e é por isso que se
exige dos candidatos ortodoxia na fé e aptidão para o ensino (Tt 1:
9; 1 Tm 3: 2). Existe uma necessidade crescente, especialmente em
vista do contínuo processo de urbanização e da elevação dos padrões de educação,
dos ministros cristãos desenvolverem nas pululantes cidades do mundo um ministério
de pregação com exposição bíblica sistemática, para "pregar a palavra.
. . com toda a doutrina". Isto foi exatamente o que o próprio Paulo
fez em Éfeso, como era do conhecimento de Timóteo. Por cerca de três anos ele
ensinou "publicamente e pelas casas .. . todo o conselho de
Deus" (At 20: 20-27; cf. 19: 8-10). Agora é a vez de Timóteo fazer o
mesmo.
Tal é a instrução de
Paulo a Timóteo. Ele deve pregar a Palavra anunciando a mensagem dada por
Deus, mas deve fazê-lo com um sentido de urgência, deve aplicá-la ao contexto
da situação presente, deve ser paciente em seu modo de ser e inteligente na
sua apresentação.
2. A base da
exortação ( vs. 1, 3-8)
Conjuro-te,
perante Deus e Cristo Jesus que há de julgar vivos e mortos, pela sua
manifestação e pelo seu reino:. . .3Pois haverá
tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de
mestres, segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos
ouvidos, 4e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se
às fábulas. 5Tu, porém, sê sóbrio em todas as cousas, suporta
as aflições, faze o trabalho de evangelista, cumpre cabalmente o teu
ministério. 6Quanto a
mim, estou sendo já oferecido por libação, e o tempo da minha partida é
chegado. '''Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé. 8Já agora
a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará
naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua vinda.
Já se tornou
evidente, nos capítulos anteriores desta carta, que Timóteo era tímido por
natureza e que os tempos em que ele vivia e trabalhava eram (na melhor das
hipóteses) desfavoráveis. Ele deve ter estremecido ao ler a solene exortação do
apóstolo para continuar pregando a palavra. A tentação de recuar diante de tal
responsabilidade bem que poderia acontecer. Por isso, além de dar uma ordem,
Paulo inclui incentivos. Pede que Timóteo olhe a três direções: primeiro para
Jesus Cristo, o juiz e rei que retorna; em segundo lugar, ao cenário
contemporâneo; e, em terceiro, a ele, Paulo, o idoso prisioneiro à beira do
martírio.
a. O Cristo que
vem (v.1)
Paulo não está dando
esta ordem em seu próprio nome ou sob sua própria autoridade, mas "perante
Deus e Cristo Jesus", estando assim consciente da direção e aprovação
divina. Talvez o mais forte de todos os incentivos à fidelidade seja saber que
a ordem foi dada por Deus. Bastava dar a Timóteo a certeza de que ele é servo
do Deus altíssimo e embaixador de Jesus Cristo, e de que o desafio que Paulo
lhe faz é um desafio da parte de Deus, para que nada pudesse desviá-lo de sua
tarefa.
A ênfase maior deste
primeiro versículo, contudo, não recai tanto na presença de Deus, mas na volta
de Cristo. É evidente que Paulo ainda crê na volta pessoal de Cristo. A
respeito disso ele escrevera em suas cartas anteriores, especialmente nas
destinadas à igreja em Tessalônica. Agora, mesmo sabendo que morrerá antes
desse evento, ainda assim continua esperando por ele, no final do seu
ministério. Paulo vive à luz desse acontecimento e descreve os
cristãos como aqueles que amam a vinda de Cristo (v.8). Ele está seguro de que
Cristo voltará de forma visível (a palavra é epiphaneia nos
vs. 1 e 8), e que, quando aparecer, "há de julgar os vivos e os
mortos" e consumar o "seu reino" e poder.
Estas três verdades
(o aparecimento, o juízo e o reino) devem ser para nós uma expectativa tão
clara e certa quanto foi para Paulo e Timóteo. Elas não deixam de exercer uma poderosa
influência em nosso ministério, porque tanto os que pregam a palavra, como os
que a ouvem, terão de dar contas a Cristo, quando ele aparecer.
b. O cenário
prevalecente (vs. 3-5)
Notemos a palavra
"pois" (gar), com que se inicia este parágrafo.
Paulo fornece uma segunda base, sobre a qual apoia a sua exortação. Há um
outro evento futuro, antes da vinda de Cristo, a saber, dias negros e
difíceis. Embora pareça estar prevendo que a situação piorará, é evidente, a
partir deste parágrafo e do que ele escreveu anteriormente, que para Timóteo
tal tempo já começara. É a luz deste cenário prevalecente que Paulo dá outras
instruções.
Como são esses
tempos? Uma característica ele destaca, que as pessoas não podem suportar a
verdade. Paulo expressa isso negativa e positivamente, e declara isso duas
vezes: "não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de
mestres segundo as suas próprias cobiças" (v.3). "E se recusarão a
dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas" (v.4). Em outras palavras,
tais pessoas não podem suportar a verdade e recusam-se a ouvi-la, buscando,
então, mestres que adaptem suas fantasias especulativas, nas quais estão
determinados a andar. Tudo isso tem a ver com os ouvidos daquelas pessoas,
ouvidos que são mencionadosduas vezes. Elas sofrem de uma condição
patológica peculiar, conhecida como "coceira nos ouvidos", ou
"fome de novidades". Tal expressão é uma figura de linguagem para
aquele tipo de curiosidade que está ávido por saber de casos picantes e interessantes.
Além disso, esta coceira é abrandada pelas mensagens dos novos mestres. Na
prática, o que tais pessoas fazem é fechar os ouvidos à verdade (cf. At 7: 57)
e abri-los a qualquer mestre que alivie a sua coceira, coçando-a.
Notemos que o que
rejeitam é a "sã doutrina" (v.3) ou "a verdade" (v.4), e o
que preferem são "as suas próprias cobiças" (v.3) ou
"fábulas" (v.4). Assim, substituem a revelação divina por suas
fantasias. O critério pelo qual julgam os mestres não é (como deveria ser) a
Palavra de Deus, mas o seu próprio gosto subjetivo. Ainda mais, não ouvem
primeiro para depois decidir se o que ouviram é verdade; primeiro decidem o
que querem ouvir e depois escolhem mestres que são obrigados a manter o padrão
por eles exigido.
Como Timóteo deverá
reagir a isto? Quase se pode adivinhar que uma tal situação
desesperadora o faria silenciar. Se os homens não podem suportar a verdade e
não querem ouvi-la, seria mais prudente para ele ficar quieto? Paulo, porém,
chega a uma conclusão diferente, porque pela terceira vez usa aqueles dois
pequenos monossílabos su de "TU, PORÉM" (cf.
3: 10-14). Ele repete sua ordem a Timóteo, ordena-lhe que seja diferente, não
se deixando influenciar pela moda prevalecente.
Agora seguem quatro
ordens bem distintas, que parecem ser deliberadamente concebidas para a
situação em que Timóteo se encontra e para o tipo de pessoas a quem ele foi
chamado a ministrar.
1 Por serem
pessoas instáveis de mente e conduta, Timóteo deverá acima de tudo ser sempre
"sóbrio". Literalmente nephö significa estar sóbrio
e, figurativamente, "livre de qualquer forma de embriagues mental e
espiritual" sendo, pois, "bem equilibrado, autocontrolado".
Quando homens e mulheres se intoxicam com heresias inebriantes e novidades
reluzentes, os ministros devem conservar-se calmos e sensatos.
2 Mesmo que o
povo não queira dar ouvidos ao seu bom ensino, Timóteo deve persistir em
ensinar, predispondo-se a suportar aflições, por causa da verdade que ele se
recusa a comprometer. Sempre que a fé bíblica se torna impopular, os ministros
são altamente tentados a mudar aqueles elementos que promovem a maior ofensa.
3 Timóteo deve
fazer o "trabalho de um evangelista', porque o povo é desgraçadamente
ignorante a respeito do verdadeiro evangelho. Não está claro se a referência é
feita a um ministério especial, como se pretende nas duas únicas outras
passagens do Novo Testamento onde a palavra ocorre (At 21; Ef 4: 11). A
alternativa é interpretá-la como alguém que prega o evangelho e testemunha de
Cristo. De qualquer forma, é como se Paulo estivesse ordenando a Timóteo:
"Faze da pregação do evangelho a obra da tua vida". As boas novas não
devem somente ser preservadas da distorção; elas devem ser propagadas.
4 Mesmo que as
pessoas abandonem o ministério de Timóteo em favor de mestres que lhes cocem as
ideias fantasiosas, Timóteo deve cumprir o seu ministério. O mesmo verbo é
usado na passagem onde Paulo e Barnabé cumpriram a obra de
assistência em Jerusalém. Lucas escreve que eles voltaram de Jerusalém, cumprida
a sua missão (At 12: 35). Assim também Timóteo deve perseverar, até que sua
tarefa esteja cumprida.
Portanto, as quatro
ordens de Paulo, ainda que diferentes nos detalhes, transmitem a mesma
mensagem geral. Aqueles dias, em que era difícil conquistar ouvidos para o
evangelho, não deveriam desencorajar Timóteo; nem detê-lo em seu ministério;
nem induzi-lo a adaptar a sua mensagem ao gosto de seus ouvintes; nem, menos
ainda, silenciá-lo de uma vez; mas antes deveriam estimulá-lo a pregar ainda
mais. Conosco deve acontecer o mesmo. Quanto mais difíceis os tempos e mais
surdas as pessoas, tanto mais clara e persuasiva deve ser a nossa
proclamação, ou, como diz Calvino, "quanto mais os homens se tornam
determinados a desprezar o ensino de Cristo, tanto mais Melosos devem ser os
ministros de Deus em pugnar por ele e tanto mais ardorosos os seus esforços em
preservá-lo incólume e, mais ainda, por sua diligência devem repelir os ataques
de Satanás".
c. O velho
apóstolo (vs. 6-8)
O terceiro motivo da
exortação tem a ver com um outro evento no futuro, ou seja, o seu
próprio martírio. O elo entre este parágrafo e o versículo 5, que o
precede, é bem claro. O argumento de Paulo poderia ser escrito da seguinte
forma: "TU, PORÉM, Timóteo, tu deves cumprir o teu ministério
porque eu já estou às portas da morte". É de vital
importância que Timóteo continue e complete o seu ministério, uma vez que a
tarefa de toda uma vida do apóstolo Paulo está chegando ao fim. Assim como
Josué sucedeu a Moisés, Salomão sucedeu a Davi e Eliseu a Elias, assim também
agora Timóteo deve suceder a Paulo.
O apóstolo usa duas
vividas figuras de linguagem para descrever sua morte próxima, uma tirada da
linguagem do sacrifício e outra (provavelmente) dos barcos. Em primeiro lugar,
"estou sendo já oferecido por libação" ou "minha vida já está
sendo colocada no altar". Ele compara a sua vida com um sacrifício e uma
oferta. Tão perto ele crê estar do martírio, que fala como se o sacrifício já
tivesse começado. E prossegue: "o tempo da minha partida é chegado".
'Tartida" (analysis) é um termo que se tornou usual para
expressar "morte", mas daí não precisamos concluir, necessariamente,
que sua origem metafórica tenha sido completamente esquecida. Significa
"desatar", "desamarrar", podendo tanto ser usado no sentido
de "levantar acampamento" (preferido por Lock, por causa da
expressão soldadesca, no versículo seguinte, "combati o bom
combate"), como também no de "libertação" de algemas (mencionado
por Simpson), ou "soltar um bote de suas amarras". A última é
certamente a mais pitoresca das três possibilidades. As duas imagens, pois,
combinam-se razoavelmente, porque o fim desta vida (derramada como libação) é
o começo da outra (posta ao mar). A âncora já foi levantada, as amarras já
estão soltas e o barco está prestes a fazer-se à vela, rumo a outra praia.
Ainda, antes do início da grande aventura de sua nova viagem, Paulo se volta a
contemplar o seu ministério de aproximadamente 30 anos. Ele o descreve
(concretamente, sem jactância) com três expressões concisas.
Primeira:
"combati o bom combate". As palavras poderiam igualmente ser
traduzidas por "corri a grande corrida", porque agön denota
qualquer contexto envolvendo esforço, seja uma corrida ou uma luta. Mas, já que
a frase seguinte alude à corrida ou carreira que ele acabou, parece provável
que Paulo esteja combinando, novamente, as metáforas do soldado e do atleta
(como em 2: 3-5) ou, pelo menos, as metáforas da luta romana e das corridas.
Em seguida escreve:
"completei a carreira". Alguns anos antes, falando aos anciãos da
mesma igreja em Éfeso, a qual Timóteo estava agora presidindo, Paulo expressara
o desejo de fazer exatamente isto. "Em nada considero a minha vida
preciosa para mim mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério
que recebi do Senhor Jesus. . ." (At 20-24). Agora Paulo está em
condições de dizer que assim o fez. "O que fora um propósito, era
agora um retrospecto, comenta N. J. D. White. Ele podia usar o tempo
perfeito do verbo nessas três expressões, tal como Jesus o fizera no cenáculo,
porque o seu fim estava tão à vista.
Terceira:
"guardei a fé". Isto bem pode significar "guardei a fé no meu
Mestre". No contexto desta carta, contudo, que enfatiza tão fortemente a
importância de guardar o depósito da verdade revelada, é mais provável que
Paulo esteja afirmando sua fidelidade neste sentido. "Guardei, com toda
segurança, como bom guardião ou despenseiro, o tesouro do evangelho confiado
aos meus cuidados."
Assim, a obra do
apóstolo e, num âmbito menor, de cada pregador ou ensinador do
evangelho, é descrita como enfrentar uma luta, correr uma corrida, guardar um
tesouro. Tais ações envolvem trabalho, sacrifício e até mesmo perigo. Em todas
as três Paulo foi fiel até o fim.
Agora nada lhe
resta, senão o prêmio, por ele chamado de "a coroa" (ou melhor,
"a grinalda") da justiça, que lhe "está guardada" e que
lhe será dada no dia da vitória, "naquele dia". Mesmo sem valor em
si, feitas de folhas verdes, em vez de folhas de prata ou ouro, as grinaldas
conquistadas pelos vencedores nos jogos gregos eram altamente apreciadas.
"Muitos vilarejos daqueles dias", assim escreve o Rev. Moule,
"derrubavam uma parte do seu muro branco a fim de que um seu filho,
coroado com a coroa de louros ou do Olímpia, adentrasse por um portão
ainda não usado antes." A coroa a que Paulo se refere como
destinada a si ele a chama de "justiça" (dikaiosynê).Pelo
seu linguajar característico, o sentido mais natural dessa palavra seria
"justificação" mas, talvez, aqui ela tenha uma colocação um
pouco diferente, estando em evidente contraste com a sentença que, a qualquer
hora, um juiz humano lhe dará numa corte humana. O imperador Nero pode
declará-lo culpado e condená-lo à morte, mas logo virá "uma magnífica
revogação do veredicto de Nero", quando "o Senhor, reto juiz", o
declarar justo.
A mesma justificação
por Cristo é também para "todos quantos amam a sua vinda". Isto não
é, de maneira alguma, uma doutrina de justificação por boas obras. É
desnecessário enfatizar a contínua convicção de Paulo, de que a salvação é um
presente da graça de Deus, "não segundo as obras, mas conforme a sua determinação
e graça" (1: 9). A coroa da justiça é concedida a "todos quantos amam
a sua vinda", não porque esta seja uma atitude meritória a ser adotada,
mas por ser uma firme evidência da justificação. O descrente, não justificado,
teme a volta de Cristo (caso creia ou simplesmente pense nela). Não estando
preparado para ela, temerá de vergonha perante Cristo, na sua vinda. O crente,
por outro lado, tendo sido justificado, aguarda a volta de Cristo e se afeiçoou
a ela. Achando-se preparado, o cristão terá confiança quando Cristo aparecer
(1 Jo 2: 28). Somente aqueles que adentraram pela fé nos benefícios da
primeira vinda de Cristo aguardam ansiosamente a sua segunda vinda (cf.
Hb 9:28).
Este é, pois, Paulo,
o velho, como ele mesmo se chamou, um ou dois anos antes, em sua carta
aFilemon (v.9). Paulo combateu o bom combate, completou a carreira e
guardou a fé. O seu sangue está a ponto de ser derramado, o seu pequeno barco
está a ponto de fazer-se à vela. Ele está esperando ansiosamente por sua coroa.
Estes fatos devem ser para Timóteo um terceiro estímulo à fidelidade.
Nosso Deus é o Deus
da História. Deus está executando o seu propósito ano após ano. Um obreiro pode
cair, mas a obra de Deus continua. A tocha do evangelho é transmitida de
geração a geração. Ao morrerem líderes da geração anterior, é da maior urgência
que se levantem aqueles da geração seguinte e com coragem tomem os seus lugares.
O coração de Timóteo deve ter sido profundamente tocado por esta exortação do
velho guerreiro Paulo, que o levara a Cristo.
Quem levou o leitor
a Cristo? Tal pessoa está envelhecendo?
Quem me levou a
Cristo está agora aposentado (mas ainda ativo!). Não podemos descansar para
sempre na liderança da geração que nos precedeu. Chegará o dia em que deveremos
substituí-los e, nós mesmos, tomaremos a liderança. Tal dia acabava de chegar
para Timóteo; a seu tempo chegará para todos nós.
Assim, pois, em
vista de que Cristo vem para julgar, e de que o mundo tem aversão pelo
evangelho, e de que a morte do apóstolo encarcerado é iminente, a última
exortação a Timóteo continha uma nota de solene urgência: "Prega
a Palavra!"
Bibliografia
John R. W. Stott
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PAZ DO SENHOR
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