Acharam a partícula de Deus. E agora? Parte 1
Com merecida empolgação, no dia de ontem, durante a conferência
de física de alta energia que ocorre em Melbourne (Austrália), cientistas
anunciaram que após anos de pesquisa e sucessivas experiências, encontraram
durante as colisões do LHC — o gigantesco acelerador de partículas situado em
Genebra — um elemento nunca antes observado, o qual, com mediana margem de
certeza e pouquíssima de erro (segundo eles, uma em três milhões é a chance de
estarem errados) pode ser o bóson de Higgs. Apesar de a mídia informar os
achados científicos, na maioria das vezes os anúncios passam despercebidos,
pois o grande público não inteirado acerca do assunto acaba não se
interessando. Para que o mesmo não aconteça por aqui, mesmo ciente de que há
muita informação na grande rede, arrisco-me a apresentar algumas linhas sobre o
tema. Muito antes de tornar-se moda falar em LHC, lembro-me quando li pela
primeira vez sobre ele em 2001, na obra O universo numa casca de noz,
de Stephen Hawking. À época, Hawking informou que os Estados Unidos planejavam
construir um acelerador de partículas que se chamaria “SSC (Superconducting Super Collider,
Supercolisor Supercondutor)”, mas que, em 1994, apesar de a máquina estar
semiconstruída, a nação americana abortou o empreendimento numa ação que o
cientista classificou como “um surto de complexo de pobreza” (p.199). Ele,
porém, acrescentou que outros “aceleradores de partículas, como LHC (Large Hadron Collider,
Grande Acelerador de Hádrons), em Genebra, estão agora sendo construídos”
(p.200). Além disso, em 2008, quando se tornou chique falar sobre acelerador de
partícula, escrevi um longo artigo tratando do tema fé e ciência e então fiz
uma breve consideração acerca das primeiras experiências com o LHC. Antes,
porém, de falar do bóson de Higgs propriamente dito, é preciso fazer uma
digressão histórica.
Há exatos sessenta anos, um grupo de cientistas, apoiado sobre as sucessivas descobertas dos séculos anteriores (lembremos: até para se contestar é preciso haver paradigmas que sirvam de “base”), propôs uma teoria que contrapunha o modelo de física até então em vigência. Fico a imaginar o impacto sofrido pelos crentes que, ao abrirem os periódicos da época deparavam-se com matérias cujos títulos diziam algo como: “No início era um átomo...” e, como subtítulo: “Um grupo de físicos afirma saber como teria sido o Dia da Criação. Para eles, o Universo não surgiu de um ato divino, mas de uma explosão, o Big Bang” (considerando o que a historiografia pentecostal nos conta desse período, é provável que os meus pares tenham, no máximo, “ouvido falar” do assunto). Em comemoração aos sessenta anos da editora Globo, a revista Época, em sua edição histórica (4 de junho de 2012, n° 733, pp.64-5.) trouxe a referida matéria assinada por Pedro de Luna. O grupo de cientistas responsável pela mudança de perspectiva que revolucionou a física clássica é formado por três estudiosos, sendo os dois primeiros muito populares: Edwin Hubble (1889-1953), Albert Einstein (1879-1955) e George Gamow (1904-1968). O que mudou a partir das descobertas desses cientistas? Bem, para ser simplista, porém direto: Eles, basicamente, criaram uma “nova física”.
A despeito da importância das descobertas daquele momento histórico (só mais bem valorizadas posteriormente), assim como em outras épocas, a sociedade do século passado também era multifacetada, principalmente em torno das questões científicas, tendo espaço para ceticismo (filosófico e de senso comum), indiferença, desconhecimento e dúvidas sérias. O que a geração do início do século 21 precisa entender é que nós, definitivamente, não inauguramos o mundo e, provavelmente, não iremos “encerrá-lo”. Somos finitos e transitórios demais para exaurir o universo. A sensação de ter desvendado alguns mistérios e de, talvez, ter chegado ao “fim” (a propósito, fim de quê mesmo?), não é exclusividade nossa, porém, a sobriedade e o bom senso são recomendáveis em tempos de novas descobertas. A historiografia está repleta de exemplos.
No século 19, Joseph Bertrand, um dos maiores matemáticos e geômetras da França, em sua obra Os fundadores da astronomia moderna (publicada pela primeira vez em 1865), apesar de reconhecer que a astronomia, a física e, por extensão, até mesmo todo o pensamento científico, nunca mais serão os mesmos após Nicolau Copérnico, Tycho Brahe, Johannes Kepler, Galileu Galilei e Isaac Newton, questiona oportunamente: “Na relação dos progressos reservados para a nossa época, não seria permitido esperar, [...], a melhora desses árduos caminhos e também explicações mais simples e mais acessíveis ao raciocínio?” (p.216). Após a pergunta retórica, o francês finaliza sua obra alinhando-se ao pensamento do matemático italiano, Joseph-Louis Lagrange, para quem uma obra dedicada a aperfeiçoar o pensamento newtoniano (“a melhora desses árduos caminhos e também explicações mais simples e mais acessíveis ao raciocínio”, p.216), “honraria tanto o nosso século [no caso, o 19] quanto o livro dosPrincípios [de Sir Isaac Newton] honrou o século passado” (p.216). E conclui: “Essa obra-prima, sonhada em 1786 pelo mais ilustre sucessor de Newton [...], ainda está por ser feita em nossos dias” (p.217).
Apesar de Lagrange, citado por Bertrand, afirmar que a obra Princípios pode ser considerada a “mais alta produção do espírito humano” (p.205), o próprio Newton não reputava o seu modelo de física como a última palavra no assunto. E, o mesmo Lagrange que elogiou o trabalho do inglês, falava sobre a necessidade de um material que tornasse os princípios matemáticos newtonianos mais palatáveis. O grupo de cientistas o qual me referi no início do texto talvez não tenha tornado a física mais acessível, porém, com certeza a revolucionou. Assim como anteriormente ocorrera com o grupo biografado por Bertrand, do qual Newton é o destaque, pois foi quem efetivamente revolucionou a física, suplantando de vez o modelo aristotélico, é preciso reconhecer Lemaître, Hubble, Gamow e outros tantos, porém, o ícone da revolução da física clássica ocorrida no século passado é, sem dúvida, Albert Einstein, por suas teorias da relatividade (especial e geral) e atômica. Os feitos copernicano, newtoniano e einsteiniano, são apenas três exemplos do que Thomas Kuhn acertadamente denomina de “troca de paradigma”. Kuhn considerava como paradigmas “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante um tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (A Estrutura das Revoluções Científicas, p.13).
A possível descoberta do bóson de Higgs pode ser considerada uma mudança paradigmática ou uma revolução científica? À luz do pensamento kuhniano, não. A única coisa que se pode dizer é que se constatou um elemento fundamental para se confirmar a hipótese proposta na teoria do Big Bang. Mas isso, longe de ser o “fim” é para os proponentes do “átomo primordial”, apenas o “começo”. Pois, segundo o mesmo Kuhn, “nem todas as teorias são teorias paradigmáticas. Tanto nos períodos pré-paradigmáticos, como durante as crises que conduzem a mudanças em grande escala do paradigma, os cientistas costumam desenvolver muitas teorias especulativas e desarticuladas, capazes de indicar o caminho para novas descobertas. Muitas vezes, entretanto, essa descoberta não é exatamente antecipada pela hipótese especulativa e experimental. Somente depois de articularmos estreitamente a experiência e a teoria experimental pode surgir a descoberta e a teoria converter-se em paradigma” (p.88). As três revoluções já anteriormente mencionadas (copernicana, newtoniana e einsteiniana), modificaram de forma radical e completa a visão da física, fazendo com que de centro do universo, tornássemo-nos periferia; de um universo estático que seguia leis rígidas e imutáveis, descobrimo-nos em expansão, movendo-se a certa velocidade. Nessa perspectiva, mesmo que o elemento identificado nas trombadas do LHC seja o bóson de Higgs, definitivamente não estamos experimentando nenhuma revolução científica.
fonte CPAD
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